quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Escrever sem Medo




Não podemos restringir Stephen King a um único género. Ele próprio, pelo contrário, deveria fazê-lo como neste caso fica demonstrado, apesar da brevidade do livro.
Aqui ele traça uma história de passagem à idade adulta que é, igualmente, um mistério - em certa medida ao jeito policial - que deriva para os elementos sobrenaturais.
O autor parece ter-se debruçado com prazer no mundo de um parque de diversões nos anos 1970, um cenário que a ficção americana tornou vastamente conhecido como símbolo nostálgico. De um espaço de amadurecimento onde todas as hipóteses estão em aberto e de um tempo em que a inocência reinante começava a ser contaminada pelo perigo.
A primeira parte do seu livro é a história de Devin Jones num Verão a trabalhar em Joyland. Um percurso pelos bastidores de um parque de diversões: as peculiaridades das suas gentes, a especificidade da sua linguagem e a cansativa alegria de proporcionar felicidade a outros.
Há alguma implausabilidade dentro do funcionamento de tal organismo onde a segurança é essencial, mas a invenção da gíria dos empregados é um jogo de imaginação que traz identidade à história a ser contada.
Uma história de relações improváveis, sobretudo duas delas que se tornam mais importantes tardiamente e que muito se aproximam da ideia de formação de laços de família: amor para com a mãe e responsabilidade para com o filho dela.
Essas relações são importantes para o que virá mais tarde na trama, mas toda este segmento dedicado ao funcionamento do parque de diversões é muito extenso sem estar ao serviço da história como um todo.
Até se trata da melhor porção do livro, aquela pela qual se nota maior paixão de King, que revela um cuidado de escrita que evita qualquer sinal de maçada no leitor.
Provavelmente porque o protagonista é uma versão do próprio autor que, à data desta história, estava a meio do seus vinte anos e, como o protagonista, um rapaz do Nordeste americano.
Segue-se a substância dos acontecimentos, a investigação sobre o assassinato da rapariga cujo fantasma assombra a Casa do Terror do parque.
O papel do rapaz na cadeira de rodas que Devin trata com todo o carinho torna-se claro pois é ele quem vê claramente o fantasma e leva o protagonista à investigação do que acontecera quatro anos antes.
A investigação acontece mas num papel secundário em relação ao despertar sexual que o protagonista tem com uma mulher mais velha.
Nessa investigação, os elementos sobrenaturais nem sequer são importantes, podendo a mesma resultar com um mais simples trabalho de intriga mais trivial e realista.
Fica mesmo a ideia de que tais elementos foram integrados para garantir o reconhecimento da "marca" do autor no domínio do Horror.
De forma mais grave, o sobrenatural funciona como Deus ex machina para responder a vários problemas narrativos que vão surgindo numa fase do livro em que o investimento de King parece reduzido.
Toda a sua escrita se mostra mais trapalhona a caminho do final. Perdida a cativante astúcia do início, os sérios problemas da construção dessa fase do livro tornam-se evidentes.
Um número crescente de inconsistências internas, alguns anacronismos e, sobretudo, algum descuido com o encadeamento dos acontecimentos que em vez de ritmados parecem vertiginosos.
A ideia de que as amarras do género são, sobretudo, uma criação do próprio Stephen King tornam-se evidentes e levantam a questão de como poderia ter sido o livro se fosse apenas esse relato (eventualmente) pessoal.


Bem-vindos a Joyland (Stephen King)
Bertrand Editora
1ª edição - Novembro de 2015
256 páginas

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