quinta-feira, 30 de maio de 2013

Homem, mito, obra


O subtítulo apendido a esta edição - no original La Vida del Che - explicita bem que Héctor Oesterheld não escreveu uma biografia distanciada mas uma belíssima tradução da mistura de comprometimento individual com o grito político colectivo que a vida de Che inspirou e a sua morte libertou e cristalizou até aos dias de hoje.
Trata-se de um retrato feito com a urgência da militância pessoal a par da política, uma homenagem fúnebre e um manifesto ideológico.
Um retrato que explica na perfeição que linha de carácter contínua foi essa que fez de Che tão eficaz como diplomata e como guerrilheiro, mas inconformado com o tipo de sucesso alcançado com qualquer um dos papéis: um idealismo sempre activo que se socorria da inteligência pragmática, até que esse pragmatismo deixasse de conseguir justificar as amarras colocadas ao sonho de mudar o mundo.
Através dos pensamentos de outros, aliados ou adversários, Oesterheld elogias as qualidades de Che. Pela sua própria boca - e por alguns actos - humaniza-o pelos seus erros e problemas.
Toda a escrita acaba por acentuar a ligação pessoal que se cria com Che a par da admiração distanciada do mito.
O desenho de Alberto Breccia acompanha essa ideia de junção do mito ao humano. Não sendo tão bom quanto a obra-prima que é o seu trabalho em Mort Cinder, vale-se do detalhe do traço e da complexa composição individualizada das vinhetas para vincar a humanidade do homem no interior de representações de guerra que recordam, inevitavelmente, os livros de aventuras e que fazem de Che um herói.
Nota-se que Alberto Breccia tem o mesmo grau de admiração que Oesterheld sempre que desenha o próprio Che. Alguns dos retratos dele são tão icónicos como a foto de Alberto Koda.
O trabalho gráfico de Enrique Breccia tem um espírito mais independente perante o texto e, creio que em grande parte por isso, revela-se mais interessante do que o do pai.
Baseando o seu trabalho em silhuetas, tem a capacidade (logo num dos seus primeiros trabalhos) de usar a tinta negra para extrair do branco da folha a mesma expressividade dos seus traços.
As superfícies que ficam por preencher são tão importantes para definir a imagem final - e a intensidade do que transmite - como o desenho.
Talvez a maneira mais expressiva de o dizer seja invertendo a ideia dos escultores que retiram apenas o indispensável para que se veja a figura que já está embutida no bloco de pedra. Enrique Breccia trataria d, por isso, de acrescentar apenas a tinta suficiente para definir os contornos da imagem já inscrita na folha.
Os seus desenhos, dedicados aos dias finais de Che, assumem contornos de comentário político - como na representação grotesca (de inumana) dos assassinos de Che - mas também estabelece a ideia de vaguidade (na ausência de cenários em várias vinhetas) que faz do relato da morte de Che na Bolívia a representação da morte do mito em qualquer - e em todos - lugar do mundo.
Não importa tentar analisar se o trabalho do filho é melhor do que o do pai, importa fruir dos seus dois enormes talentos e como se combinam com o de Héctor Oesterheld.
A qualidade da edição Conrad, de capa dura e formato já próximo do dos álbuns franco-belgas e incluindo um prólogo de Ernesto Sabato, merece apenas um reparo no uso da amplicação de pormenores de vinhetas para preencher a totalidade de algumas páginas, em vez de as deixar em branco.
Esta técnica serve para acerto o alinhamento do início dos capítulos com as páginas ímpares do livro mas esforça a qualidade do material em que se baseou a impressão ao máximo e, por vezes, esse limite da ampliação transforma-se numa representação abstracta porque coincide com os momentos desenhados por Enrique Breccia.
No resto, a edição está à altura da lenda de Che e da qualidade da obra.


Che: Os últimos dias de um herói (Héctor Oesterheld, Alberto Breccia, Enrique Breccia)
Conrad Editora
Sem indicação da edição - 2008
96 páginas

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