segunda-feira, 6 de maio de 2013

Defeitos do livro de ficção que nunca o foi

Estamos perante um livro que não é um livro, antes aquilo a que chamaria uma longa carta de memórias escrita por um pobre rapaz indonésio que atingiu grande sucesso, para a professora que o inspirou a conseguir superar-se.
Digo-o por uma avaliação estética e estrutural da obra. Ambos os aspectos são pouco consistentes e reflectem o amadorismo que está ligado à forma como o autor abordou o trabalho.
O livro não tem uma ideia de narrativa a longo prazo, vivendo de pequenas conquistas que vão sendo feitas pelos alunos daquela escola.
Mesmo pelo meio desses pequenos momentos de narrativa, o autor vai derivando para pormenores que lhe parecem advir de memórias extemporâneas que considera merecedoras de figurar no livro.
Há capítulos que brotam de forma surpreendente e que parecem existir isolados dos que imediatamente os precedem e sucedem.
Isso causa um sentimento de perda na cronologia do livro: de imprecisões na continuidade a incerteza na idade que os miúdos têm a cada episódio. Curioso que tal aconteça porque, no caso mais provável, o autor tentou ser o mais rigoroso possível com o tempo que passava, não tendo depois recorrido às ferramentas literárias para melhor harmonizar ou mesmo reconstruir a cronologia individual dos episódios com a global da história.
Estamos perante um fluxo de memória que terá sido escrito num impulso com intenções meramente pessoais e o qual terá chegado à publicação por causa de alguns dos valores que exalta.
Afinal este é um romance apenas porque o autor assim lhe chama para poder aceitar as pequenas liberdades literárias que usa para passar as suas memórias a um formato escrito.
Os episódios inseridos num impulso têm ainda mais um efeito incontornável, o de criar um sentimento de estarmos a entrar, mais do que uma vez, em terreno de realismo mágico.
Terreno que dá um certo exotismo ao livro, o que o distinguirá de uma história idêntica passada no mundo ocidental, mas que também nem sempre é o mais compatível com a história simples onde se distinguem com facilidade os "bons" dos "maus".
Aliás, na combinação desse terreno de conto de fadas com essa moralidade evidente, o livro parece mostrar-se mais apontado a crianças do que adultos, dando-lhes as apropriadas lições: que a educação é sempre algo pelo que devemos lutar, que o capitalismo feroz é o inimigo maior do indivíduo e do seu sucesso e, até, que a inspiração deve vir de alguns ídolos mas também da religião.
Mas se necessidade de dar as lições prevalece sobre a arte de narrar, na verdade a moral não prevalece sobre a realidade.
A surpresa que afasta o livro de uma auto-ajuda exótica para o leitor ocidental é o seu final, uma confissão sobre as vidas dos protagonistas muitos anos depois. A maioria saiu derrotada, submetida a maus trabalhos e vidas difíceis, apesar da luta daquela época.
Curiosamente, o insucesso generalizado acaba por reforçar a ideia de que a professora homenageada e que tanto inspirou o autor, é a personagem menos valorizada pelo livro.
Os seus esforços são nobres, mas os seus feitos não são extraordinários. E se deu a um dos rapazes um futuro melhor foi numa mistura do acaso com o esforço individual dele.
A sua maior qualidade vem da turma que teve a sorte de encontrar, com um sobredotado, um artista e um rapaz (o protagonista) que se valoriza com o tempo, entre outras personalidade que se complementam perfeitamente (naquilo que diria que era um esforço demasiado grande da ficção, não estivéssemos perante o que são quase Memórias).
O protagonista acaba por ser quem mais se evidencia, como não poderia deixar de ser num livro de memórias com um ponto de vista único, embora por vezes a roçar perigosamente o auto-elogio.
Mas são algumas de entre as outras personagens que acabam por se revelar muito interessantes ao longo do percurso feito, com as mais pequenas vitórias - e derrotas, que mostram muitas vezes maior força como lições humanas do que todo o resto do livro - pessoais a proporcionarem os bons momentos do livro.
Sobretudo Lintang, o rapaz de intelecto extraordinário que pedalava quarenta quilómetros para a escola, que não nos permite vê-lo como um injustiçado pois tem felicidade na vida simples de pobre pai de família.
Não consigo dar o meu beneplácito ao livro apenas a partir destes elementos positivos - uma personagem e uns seus quantos episódio - mas estou em crer que o leitor mais apropriado ao livro será levado pela combinação do exotismo geográfico com a temática cada vez mais premente do desprezo dos "nossos" jovens pela sua educação.
As lições passarão facilmente por uns leitores que os oferecerão depois a outros e assim por diante, garantindo um sucesso razoável ao livro.
Assim, o seu objectivo principal talvez esteja alcançado, pois a homenagem maior do autor à sua professora é a de ter alcançado um público vasto e fazê-lo conhecer a realidade vivida por aquela turma em defesa da sua escola.


Os Guerreiros do Arco-Íris (Andrea Hirata)
Editorial Presença
1ª edição - Março de 2013
288 páginas

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