sexta-feira, 24 de maio de 2013

Se um escritor austríaco conseguiu ver...

Nilo, como Lágrimas na Chuva, acende a consciência de que já há muito tempo deve ter vindo a haver uma reflexão dos autores europeus sobre a evolução social no seu continente a que não se deu atenção suficiente nem atempada.
Em ambos os casos recorrem a elementos de que se poderão chamar ficção científica, embora Martin Amanhauser se tenha limitado a prever (ainda em 2001) um ano de 2010 em que a tecnologia deu pequenos mas significativos passos para lá do ponto (real) em que está agora.
Tirando esse pequeno falhanço sobre o ponto em que estão os telemóveis, a sua ficção de então parece a realidade de agora.
Uma doença espalha-se, acompanhada de paranói, pela Europa sem que as suas causas sejam bem conhecidas.
A crise económica transforma a Europa numa extensão do deserto, em que a aridez toma conta tanto dos elementos físicos como dos sociais.
Partidos extremistas (sobretudo de direita), antes minoritários, preparam-se para ter poder à medida que a União Europeia abafa a independência dos países.
Escândalos - sobretudo de índole sexual e, se possível, homossexual - são procurados e fabricados consoante as necessidades de controlar o poder ou distrair o povo.
Fechamos o livro e temos de perguntar como terá sido possível que um escritor austríaco tenha conseguido prever a realidade de 2010 com elevado acerto, nove anos antes, e outros, provavelmente com acesso a mais ou melhor informação, continuem hoje sem perceber a realidade.
Depois há logo outra pergunta que se segue a essa: Porque é que ninguém leu este livro a tempo?
(Deixo esta nota para explicar que o encontrei, pouco mais caro do que sendo dado, numa daquelas feiras de livros em saldo que se montam em qualquer lugar onde desaguem transportes públicos.)
À segunda pergunta posso arriscar uma resposta mais informada. A culpa será de um estilo austríaco cerebral de um modo (quase) severo - lembremos Elfriede Jelinek - para que seja facilmente partilhado pelos países "do Sul da Europa".
Embora o livro não se torne hermético para o leitor, até porque tem arrojos - o parágrafo constitúído pela reprodução de postais, por exemplo - que se desejaria terem ressurgido ao longo de todo o livro, tem uma rigidez de concepção que não se rende aos mecanismos que perdoam ao leitor a sua parte do trabalho. 
A abordagem de Amanshauser à história é de tal maneira que todos os elementos estão ao mesmo nível, em vez de tentar explorar aqueles elementos que, de certeza, teriam cativado as pessoas.
Basta pensar em Millennium para perceber que Amanshauser tinha podido alcançado - e antecipado - igual sucesso.
A jovem protagonista, uma fotógrafa radicalmente careca que trocou os elogios à sua arte pelo dinheiro das fotografias para tablóides, que persegue o grande escândalo político do país enquanto o violento ex-namorado da irmã a persegue a ela, poderia ter tido o mesmo carisma e a mesma tendência para protagonizar thrillers que teve Lisbeth Salander.
O objectivo não era esse, quem lê este livro não se arrisca a distrair com esses detalhes, mas acaba a pensar sobre o essencial, o estado da União Europeia.
Mesmo com enorme atraso, a tal ponto que o futuro do livro já é o nosso passado, ler Nilo é ter de abrir a mente aos problemas que estão a nascer dos problemas que ficaram por resolver.


Nilo (Martin Amanshauser)
Teorema
Sem indicação da edição - Janeiro de 2003
204 páginas

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