Não foi só por cá que Axila e outras histórias indecorosas foi lançado em simultâneo com José. Foi assim no Brasil, como se Rubem Fonseca quisesse com este livro compensar os leitores daquele outro.
Como se, sabendo ele que as memórias que dera em escrever não correspondiam à literatura que queria apresentar, beneficiasse os seus leitores com um conjunto de contos onde as suas melhores características se evidenciam.
Aquela forma sucinta de narrar tudo o que é essencial, evitando os artifícios narrativos que deveriam simplificar a tarefa de um escritor mas que parecem levar ao excesso de palavras. São as acções que acabam por adjectivar os personagens que as executam.
Aquela aspereza com que brinda as suas personagens, que devem existir na folha como se as tivesse visto a passear pela cidade. É a cidade que se faz cenário priveligiado para Rubem Fonseca e que aglutina o pior da natureza humana.
Aquela forma de conjugar a violência e o desejo, a crueldade e o humor. A natureza humana retratada pela brevidade do confronto entre a indiferença com que se mata e o entusiasmo com que se ama.
O domínio de Rubem Fonseca sobre as ferramentas de escritor que criou para si mesmo continua no seu máximo, causando o vício eufórico do leitor.
É no conto que os talentos de Rubem Fonseca sobressaiem, porque a vertigem da linguagem é tanto maior quanto menos superfície tem para explanar as considerações do autor.
Tudo isso fica bem evidenciado num dos contos do livro, Livre-Alvedrio, que merecerá figurar entre o conjunto dos seus melhores. Um noir, como sempre deu algum jeito para que Rubem Fonseca juntasse morte e sexo, secretista até ao último - e doloroso e magnífico - parágrafo e com uma eficácia desobrigada que Raymond Chandler teria gostado de reclamar para si mesmo.
Tudo o que está escrito neste conto tem maneira de desabrochar em leituras mais completas e complexas que romances com cem vezes mais páginas nunca encontram forma de projectar no leitor.
Ainda assim, a antologia está bem longe de ser perfeita. Há alguns contos que parecem reciclar ideias com a veleidade de quem se começou a citar a si próprio.
A presença, repetida em vários contos mas com protagonismo diverso, do detective Guedes de Bufo & Spallanzani denota que há um encerramento do escritor num seu universo que deixou de se expandir, também porque o Brasil parece vir perdendo as formas de violência que durante muito tempo lhe alimentou a ferocidade.
Claro que isto significa que as suas obsessões predilectas continuam todas lá, embora a possamos resumir numa: carnalidade. Ora pelo sexo, ora pela morte.
Há muitas mulheres que a geram pelas duas vias ou, melhor dizendo, que merecem a morte (aos olhos do narrador) porque colocaram em causa o sexo.
Poderia falar-se em machismo dominante, mas se os homens de Rubem Fonseca estão sempre à procura de uma justificação e de uma forma para se livrarem das suas mulheres é porque começam a sofrer com o convívio prolongado e constante... com a humanidade. A solidão - e as liberdades que isso proporciona - é o estado favorito das personagens masculinas de Rubem.
Embora também haja motivos mais mundanos, daqueles que são das personagens mas devem pertencer ao autor. Afinal de contas, alguém diz a páginas tantas que há três coisas que odeia em mulheres: peitos de silicone, tatuagens e burrice.
Tudo relacionado com o coito, com o durante e o depois, mas também com o envelhecimento. Não poder trocar umas palavras depois do sexo é tão mau como não poder trocar umas palavras ao longo da vida. Um corpo alterado envelhece ainda pior em torno das "partes falsas". E lá estão de novo os homens e a olharem para um futuro juntos e a conseguirem descobrir como lhe fugir...
Nestes contos, mais do que em José, em que Rubem Fonseca se fica pelos seus primeiros anos e foge vezes demais ao que interessa saber, ficamos com uma ideia do que ele pensa e de como ele é.
A maneira como integra nas histórias alguns parágrafos de dispersão do tema central, apenas para poder dar a opinião do personagem - que será a sua - é perfeita.
Opiniões que vão desde o que não gosta numa mulher até a considerações sobre o Acordo Ortográfico, já no penúltimo conto.
Escreveu Rubem, sobre um acento, que fica sem saber onde o colocar e que, se o mandar "meter aí" só os leitores portugueses o perceberiam. Ainda bem que ele se lembra de nós, do lado de cá do Atlântico, mas ainda bem que ele continua radicado no seu próprio país, retirando inspiração de Machado de Assis para Axila, por exemplo. Porque se em José recordava ao seu país os nossos escritores, agora relembra-nos a nós os escritores que por lá reinventavam o Português.
Como ele próprio continua a fazer, mesmo se algumas das suas ideias já não têm a força dos seus melhores anos. A sua escrita contista continua a ser para acompanhar sem falta!
Axila e outras histórias indecorosas (Rubem Fonseca)
Sextante Editora
1ª edição - Outubro de 2012
144 páginas
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