domingo, 30 de junho de 2013

Sob a máscara do herói, a Literatura

Fantomas Contra os Vampiros Multinacionais é um livro de intervenção ideológica, pelo que se pode dizer que ele é, em certa medida, falhado.
Falhado porque a sua validade perante o mundo de agora continua - se não terá mesmo aumentado - como perante o mundo que, em 1975, o Tribunal Russell II (em que Julio Cortázar participou) analisava.
Claro que, para o leitor, isso permite-lhe continuar a encontrar um desafio intelectual no que está a ler, além daquele proporcionado pelo extraordinário formato assumido por Cortázar.
Trata-se de uma novela infiltrada pelas páginas de uma banda desenhada que está no coração da sua narrativa. Uma banda desenhada que, por sua vez, vai parar às mãos de Júlio Cortázar que é autor e personagem.
Quando ele compra uma revista de banda desenhada não imagina que esta falará com e sobre ele a propósito da própria experiência que está a viver e narrar.
A partir desse momento é impossível desenovelar realidade e ficção, narrativa e banda desenhada, autor e personagem. São todos utensílios essenciais à divulgação urgente mas cativante das conclusões técnicas dos relatórios desenvolvidos pelo grupo de trabalho que reflectira sobre as necessidade prementes e os dados históricos mais violentos da América Latina.
Sendo próprio de um autor de elevada capacidade literária, o seu encontro com a banda desenhada tem o dom da elevação do material de entretenimento barato pela importância que esta - e o seu protagonista mascarado - assume lado a lado com a heroicidade dos escritores-protagonistas que se juntam a Julio: Susan Sontag, Alberto Moravia e Octavio Paz.
Os quatro escritores estão ao lado do herói de aventuras defendendo a vida da página impressa, pois até Fantomas é um herói culto como a banda desenhada é uma forma primeira de Cultura para muitos leitores - e uma forma contínua para muitos outros.
A aventura - um dos símbolos máximos da imaginação - é a arma maior contra o tal vampirismo multinacional: um capitalismo canibal que quer desprover as pessoas do conhecimento e da memória para que sejam autómatos mais eficazes.
(Em jeito de aviso, diga-se que tendo o livro tem um manifesto teor esquerdista, não creio que qualquer leitor com outras tendências ideológicas se possa sentir mal com a guerrilha da independência autoral contra a uniformização funcional - que neste caso leva, então, o nome de capitalismo.)
Esta aventura em particular é contra o desaparecimento de livros e a destruição de bibliotecas, num fenómeno com algo de sobrenatural e muito de intencional.
Fantomas combate o fenómeno a solo e pela força enquanto os escritores - os pensadores, em geral, se pensarmos que o livro fala sobre o grupo do Tribunal Russell II onde não estavam exclusivamente escritores - combatem em grupo e pela força da criação, mesmo tortuosa ou acidental.
Julio Cortázar acaba por querer dizer que toda a criação - todo o formato, todo o suporte, toda a forma - pode ser a base
Fazendo intervir por entre a prosa gravuras e fotografias que acabam por ser elementos ilustrativos da narrativa com um sentido crítico - e um efeito cómico - que desafia ainda mais o entendimento restrito do que é a combinação de texto e imagem.
Porque, no final, além da importância da arte de intervenção (que chega a citar Che) aqui criada, creio que um dos fenómenos mais importantes é também esse elogio da banda desenhada de publicação barata e de produção industrial que, afinal de contas, teve uma importância vital na formação do homem e do escritor e se constituía, também, como uma forma de combate às ditaduras que o Tribunal Russell II criticava.
Uma obra que concilia banda desenhada e "grande arte" literária, que combina heróis vendidos nas bancas com escritores preservados em bibliotecas e que funde entretenimento ousado e informação técnica, mesmo que seja menor entre as várias do autor, acaba por ser maior no contexto da cidadania literata.
Esperemos que um dia destes os seus receios sobre a globalização deixem de ser matéria (sempre) actual e se possa ler o livro só pelo prazer da imaginação que envolveu. Sinal de que este combate de Fantomas já estava vencido.


Fantomas Contra os Vampiros Multinacionais (Julio Cortázar)
Editorial Teorema
Sem indicação da edição - Maio de 2003
100 páginas

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