Quando as crónicas de Luís Fernando Veríssimo eram publicadas na revista Actual, deixava a página dele para o final, terminando o avolumar de notícias, destaques e opiniões com aquela sua forma de falar da nossa realidade como se inventasse um universo paralelo mais absurdo.
Não foi receio que não dei o salto para um dos seus romances, apenas aquela infeliz necessidade de gerir prioridades. E como a escrita dele me chegava semana a semana, tudo estava bem.
Só no início do mês que agora se aproxima do fim é que voltei a Luís Fernando Veríssimo, encontrando um dos seus romances - aparentemente o único que ele decidiu escrever por vontade própria e não por conta de uma encomenda - num alfarrabista.
O livro, profundamente desvalorizado desde a sua publicação em 2009 (os 5€ marcados a lápis haviam entretanto sido riscados e reduzidos a 3€), merecia uma segunda vida e exigia que eu tomasse, finalmente, a iniciativa tantas vezes adiada.
Algum dia ainda teremos de começar a pensar em quantos novos livros precisamos de ver editados quando deixámos tantos por ler ao longo destes anos todos.
Não só tantos, mas tão bons como este é, um aprimorado exercício de Literatura e um aprimorado exercício de crítica ao mundo literário.
A história é um fresco do Brasil profundo, de vilas esquecidas à mercê da lei dos que têm dinheiro, na forma de uma intriga de espionagem como Le Carré as faz.
Um leitor de manuscritos para edição decide infiltrar os seus agentes - os companheiros de bebedeiras e de tertúlias literárias à base de boutades - numa vila do interior do Brasil para encontrar (e resgatar) Ariadne.
Ariadne é a autora - e sofredora, pensa ele - do relato na primeira pessoa que ele não consegue deitar ao lixo como faz com todos os outros (à segunda-feira) apesar dos seus erros ortográficos.
Forma-se nele, à conta de uma vibrante incompetência com alguns rasgos de génio literário, um amor nascido do efeito das palavras na imaginação dele.
Este homem torna-se um tolo, inebriado pelo "amor à primeira leitura" - o texto vai chegando capítulo a capítulo, fotocopiado e enviado à socapa do marido dominador de Ariadne - com a distância da incompletude imaginada pelo meio.
O seu sentido de ferocidade crítica e indiferente é posto de lado a tal ponto que convence até o editor a adiantar dinheiro para ir à procura do final daquele livro para uma editora cujo único sucesso de vendas é um livro de horóscopos.
A partir daí a imaginação do autor só aumenta os detalhes e as coincidências que vão envolver todas as personagens em enredos temerariamente adiando falhanços mas proporcionando páginas fantasiosas de enorme qualidade.
Para fazer a paródia de um género - e de um país e de um meio cultural - é preciso conhecê-lo e amá-lo profundamente, coisa que o autor demonstra cabalmente.
Mas só com o grau de inventividade de Veríssimo é que pode o texto assim feito passar de um divertido embuste a uma obra que se sustenta a si própria contra as demais, no que acaba por ser um género próprio e irreverente.
Sobretudo à conta de um trabalho de manipulação da Língua Portuguesa por a usar de forma a envolver o leitor na sua sonoridade e ritmo.
Um desrespeito pela matéria-prima do escritor que permite a Veríssimo escrever como quem está a moldar as palavras até ter a leveza da fala do Brasil que conheceu a gramática para a poder agilizar quotidianamente.
Isto faz com que Veríssimo seja, ele próprio, o infiltrado do mundo literário. Um cronista a escrever um romance, um humorista a fazer um livro de género e um erudito a fazer a paródia do meio literário.
Está por dentro
Afinal o seu protagonista abre o livro com a confissão que de toda uma vida mal vivida: Formei-me em Letras e na bebida busco esquecer.
A crítica ao mundo literário é generalizada, indo dos editores aos leitores, dos intelectuais ao grande público e dos cínicos comerciais aos ingénuos puristas. Só que é feita dentro de um livro tão bom que os visados não lhe resistem e exaltam-no.
O maior do humorista é fazer o público ler a sua própria desgraça e rir-se. O maior feito do escritor é tornar isso numa grande obra.
Veríssimo é tanto um como outro e Os Espiões não é um livro para andar tanto tempo esquecido nem ser vendido ao desbarato!
Os Espiões (Luís Fernando Veríssimo)
Dom Quixote
1ª edição - Novembro de 2009
176 páginas
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