sexta-feira, 21 de junho de 2013

Berlim, cidade cómica

William Bradshaw é o narrador do livro. Um personagem que nunca se envolve com aquilo que vai contando.
Amigo de Mister Norris e habitante de Berlim, sem que se entenda facilmente o porquê de qualquer um desses estados de existência.
A forma como descreve Norris é realista ao ponto da indelicadeza. A avalização que faz dos habitantes da cidade é um julgamento social e político.
Não chega, sequer, a aproximar-se de uma relação de amor-ódio com Norris ou Berlim. William Bradshaw está ali por se ter deixado arrastar por um misto de mórbida curiosidade e inércia indiferente. E se o narra de forma distanciada é porque crê que consegue evitar integrar-se em tão caricato espectáculo mesmo sendo um participante relativamente próximo.
Esta descrição de Bradshaw aproxima-o dos tempos que vai descrevendo mas que não chegar a viver. A deambulação acrítica entre crenças, partidos, negócios, convívios e personagens é a mesma que afectava a Alemanha de meados dos anos 1930.
A Alemanha era levada por promessas falsas e a aparência de sucesso, querendo acreditar em fosse o que fosse porque não havia mais nada com que se ocupar. Bradshaw faz o mesmo na sua amizade com Norris, tal como o faz o Duque.
Só que há uma consequência na frieza do narrador de Mister Norris Muda de Comboio, uma transformação do olhar clínico em olhar crítico.
Sendo tão obviamente directo, o narrador está a caracterizar os outros pelo embaraço que lhe causam, no desapego que lhes guarda.
Norris torna-se na caricatura de um sistema de vida alcançado no limbo que Berlim vivia entre os seus anos pecaminosos e austeros.
Norris revela-se uma figurinha da comédia política, grandíloquo na pequenez da sua noção da realidade. As suas convicções estão sempre alinhadas com o dinheiro e os seus actos sempre prontos a terminarem em desastre.
O seu papel de destacado orador no Partido Comunista é mais um dos seus negócios, como o é, depois, a espionagem de informações inúteis. Negócios sempre falhados que o tornam no mais aristocrático dos que não têm onde cair morto.
Norris encabeça a peça de teatro cómico e real em que se tornara Berlim.
Por essa mesma constatação, e para que Mister Norris Muda de Comboio fosse totalmente satisfatório, Isherwood teria de superar a falta de uma mais aturada construção da ficção.
Além do nome do narrador (o nome completo do autor é Christopher William Bradshaw Isherwood), também os episódios do livro terão sido directamente retirados do que viveu o autor, estando assim a realidade a servir de matéria ao escritor sem que este pareça ter encontrado as ferramentas certas para a retrabalhar.
Quando Norris se ausenta de Berlim, além de faltar o sujeito central à comédia, a ligação de Bradshaw aos restantes personagens não tem um impulsionador que lhe permita descrever a realidade.
Norris é o exemplo e o resultado, por isso as peripécias de Bradshaw - ser tradutor para o Partido Comunista ou ir tentar conviver com o Duque - são descritos como momentos de embaraço social e desinteresse pessoal.
O corolário disto é que Isherwood (ou Bradshaw) conseguiu encontrar a figura que conseguia representar o centro de massa da vida de Berlim da época, apenas não a conseguiu seguir até onde era necessário.
O seu olhar distanciado talvez o tenha impedido de penetrar nos muitos episódios que Norris se decidia ou não a relatar em segunda mão e que, por isso, não se enquandram nessa visão directa e dura do narrador.


Mister Norris Muda de Comboio (Christopher Isherwood)
Quetzal Editores
1ª edição - Setembro de 2012
248 páginas

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