sábado, 22 de junho de 2013

Berlim, cidade trágica

Adeus a Berlim tem sobre Mister Norris Muda de Comboio a vantagem de o ponto de vista objectivo - tanto quanto possível - ser usado numa vertente que parte sempre de si mesmo.
O livro é constituído somente por fracções de diários e por relatos dos tempos que passa com determinada pessoa ou família.
Sem uma estrutura verdadeira mas com uma regulação cronológica dos períodos passados em Berlim, tornando a sua presença na cidade o fio possível para uma visão dos seus habitantes - e habitantes-tipo - e, com isso da cidade ela própria.
Uma cidade aqui, muito mais acentuadamente na fronteira entre os seus tempos de Cidade do Pecado e de Capital da Tirania.
Por um lado, uma cidade onde os comportamentos orgiásticos ainda são mantidos pelos que podem e pelos que apenas o fingem poder.
Onde a indiferença e a devassa continuam a reger a vontade dos que chamam a si o estatuto de "artista" ou "intelectual", mesmo que seja apenas para se integrarem nesse meio prazeres ilimitados.
Como a famosa personagem Sally Bowles, uma actriz à procura de uma oportunidade que acabará burlada mas feliz pela sua tolice. Se o dinheiro não abundava também não valia a pena tomar precauções em demasia: havia que perdê-lo em nome do pagamento de mais um qualquer prazer, até esse de ser levada pela certa.
Por outro lado, uma cidade em que a pobreza continua a alastrar encoberta somente por um silêncio envergonhado.
Uma pobreza que de tanto privar as pessoas, abre espaço para que elas alberguem uma qualquer ideologia. Aquela que estiver, num dado momento, por de cima, que melhor prometer contrariar os tempos difíceis.
Por isso é tão natural que a senhora Landauer vote no Partido Nacional Socialista depois de, pouco tempo antes, ter votado no Partido Comunista.
A velha Berlim tenta persistir enquanto a nova Berlim a censura cada vez mais. Mas a abertura a todos tipos de sexualidade e a sua enorme disponibilidade tornavam difícil
Não admiraria depois que Hitler tencionasse deitar abaixo esse antro de pecado para sobre as suas ruínas construir a cidade modelo do seu império.
O narrador convive mal com ambas as versões desta Berlim. Um homem ainda mais perdido no coração de uma cidade sem uma identidade.
A facilidade com que Sally Bowles lhe fala de sexo deixa-o tão desconfortável quanto a familiaridade com que os Landauer o acolhem em sua casa e lhe servem as suas melhores refeições (mesmo se continuamente se desculpam por serem tão comuns).
Há ali uma transmissão do sentimento que os estrangeiros desenvolveram para com aquela cidade, não conseguindo compreendê-la, talvez aceitando-a - podemos pensa na aceitação da sua magnífica produção cinematográfica, por exemplo - mas nunca a integrando na sua própria visão
Isherwood faz uma leitura do Presente e alguma interpolação do Futuro próximo através do único lugar em toda a Alemanha que poderia resistir-lhe.
O livro (e depois o filme, por acréscimo) ajudou a fazer perdurar o mito daquela cidade naquele momento - um paraíso de pecados que terá tido poucas cidades que com ela rivalizassem, mas também o motivo de origem de uma potencial e violenta imposição política.
Isherwood ajudou ao mito pela maneira como deixa as críticas e os avisos de fora da escrita mas podendo ser facilmente lidas na sua deambulação de estrangeiro no coração de Berlim.
Passada a premência da publicação original, ficou o retrato pouco sadio (sobretudo tendo conhecimento do que viria depois de 1932) mas demasiado tentador para não ser relido.
Tal como a própria cidade, o seu díptico berlinense fala-nos da duas facetas de uma cidade perdida para o futuro a partir do momento em que se viu perdida na sua própria amoralidade.
Curiosamente, esta mesmo com a sua estrutura aparentemente fracturada, consegue ser muito mais intensa e aprisionante para o leitor.
Creio que nas décadas de 1920 e 1930, Berlim foi realmente mais trágica do que caricata. Mais Sally Bowles do que Mister Norris.


Adeus a Berlim (Christopher Isherwood)
Quetzal Editores
1ª edição - Maio de 2011
264 páginas

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