quarta-feira, 27 de novembro de 2013

despropósito

Este é um livro que se poderia dizer a sequela de Madrugada Suja. Nesse livro é relatado o Passado a partir das noções do Presente e neste é inventado o Futuro a partir das evidências do Presente.
Ambos o fazem recorrendo a uma ficção - personagens e situações - pouco credível, com falhas óbvias de coerência interna.
Falhas mais graves neste caso, também por serem mais evidentes no confronto com as muitas informações e opiniões que são veiculadas pelos meios de comunicação correntes.
Veja-se que estamos perante a invenção de um futuro em que a Bélgica se separou em duas regiões mas permitiu que Bruxelas continuasse sob o domínio da União Europeia.
O autor ignorou as evidências acerca dos muitos movimentos separatistas dormentes no seio dos países europeus que ganhariam força para as suas lutas ao menor sinal de cedência para um primeiro de entre eles.
Logo isso coloca em causa o cenário de despaís, pois mantem uma Europa funcional e não arrisca pensar na região mais ocupada - e pressionada pelos Estados Unidos da América ou pela China - a lutar contra e tentando gerir a sua desintegração. Desintegração com repercussões financeiras e até mesmo bélicas, além de políticas, o que torna improvável que "os 27" se continuassem a dedicar a planos de ajuda financeira a países em crise.
São sintomas de uma visão muito restrita do Futuro, onde não cabe o Mundo e onde mal cabe a Europa.
Uma visão centrada num país pequeno e periférico (para não dizer à margem) aos grandes pólos de decisão, mas que não deixa de ser inesperada num autor emigrado na Alemanha.
Esta acaba sendo uma repetição - exarcebada - da actualidade tal como é repescada de vários momentos: intervenção do Fundo Monetário Internacional, Primavera Árabe ou Occupy Wall Street são lidos no Futuro deste livro com diferentes graus de evidência e importância.
A improbabilidade de chegarmos ao ponto d' "o quinto" plano de ajustamento "numa década" vem tanto do período estabelecido para tal como da crença numa paciência complacente dos portugueses ou dos países credores perante um conjunto de políticos de um país capaz de levar os juros a atingirem os 63%.
Se uma década de má política nos manteria como um dos países a utilizarem a moeda única ou nos pouparia a uma revolução sangrenta nascida nas ruas nacionais são apenas duas das várias questões a responder pelo autor ainda antes deste ponderar que um país possa ser vendido por blocos de terreno.
Não basta dizer que este é um "romance-provocação", é necessário que a provocação funcione - coisa que não acontece, se neste ponto restarem dúvidas!
Para tal é necessário que a provocação nasça de um conhecimento profundo dos cenários levantados por quem os tem vindo a pensar e, a partir daí, remodelá-los, descontruí-los ou agigantá-los.
Fazendo-o como ficção é, tanto ou mais, necessário moldar esses cenários com originalidade e risco, mas também com uma dose de afecto pelas personagens que lhe servem para vocalizar a realidade do país.
Portugal é a personagem central do livro, mas as pequenas personagens que dele fazem parte - e que o caracterizam - devem ser merecedoras da nossa atenção.
Não se cumpre nenhuma dessas possibilidade pois se as personagens mostram estar ao serviço dos momentos políticos e quotidianos da nação, nunca chegam a fazer uma caracterização dos sentimentos populacionais e, por consequência, da personagem que é um país à beira do suicídio anunciado na capa do volume.
A velha, o miúdo, o ministro das Finanças ou o homem do lixo não passam de estereótipos colocados nos extremos etários e sociais do país na expectativa de assim criar o mais abrangente conjunto de personagens para que se julgasse ver um retrato transversal a todos os géneros de portugueses.
O próprio livro acaba por os definir, quando diz que o Primeiro Ministro era tratado por "boneco". Não passam disso, ideias gerais colocadas em pose para benefício do marioneteiro literário.
Não é possível acreditar na simplicidade mental de um apanhador de lixo que depois de ter emigrado e depois de ter vendido um rim para ter dinheiro para retornar, tem como único papel queixar-se de que lhe estão sempre a sujar o chão com sangue - vindo das cabeças de manifestantes atingidas por bastonadas policiais!
Essa inconsciência da personagem não é um traço de personalidade de uma faixa da população fechada no seu limitado universo pessoal. É apenas uma anedota, que não faz rir.
Todas estas pequenas personagens do livro existem em função de momentos breves de inspiração do autor, que consegue alcançar imagens ricas - que não vão além de um ou dois parágrafos - mas que mostram a intimidade dos personagens que está ausente no resto das páginas.
Perante tais parárafos, olha-se para os relatos de cada uma delas com a sensação clara de que o autor vai improvisando (apenas para não dizer remendando) cada personagem à medida que avança o plano geral da evolução de Portugal, por contraste com a necessidade de as definir desde o início e deixar que sejam os seus percursos a falar do país para venda.
Tal conclusão evidencia-se ainda com um outro problema do livro, um problema de estruturação da escrita e que nasce de mais uma personagem de entre as várias a que o livro recorre: um historiador que vai fazendo um relato aprofundado de momentos da vida dos nossos políticos no momento em que o país era colocado em causa.
Além de ser uma voz falando sobre o Passado num livro relatado no Presente, é um caso absurdo de alguém que relata - a partir de fontes áudio - detalhes de pensamentos durante conversas.
Mesmo com o recurso a diários, seria impossível a um historiador chegar ao detalhe de um pensamento sobre um peeling ao pénis a meio de uma conversa telefónica.
Olhando para o personagem e as suas fontes, é mais uma solução de recurso para a necessidade da descrição/invenção literária de que o escritor do livro depende; e um historiador - mesmo ficcional - não pode fazer, pelo menos da maneira aqui descrita.
Há uma ideia de personagem recorrente ao longo do livro, a do comentador que está limitado a proferir pedaços de retórica tiradas ao lugar-comum da televisão actual, mas sem chegar a qualquer ideia.
despaís é precisamente isso, uma composição mal elaborada mas vistosa em torno de uma ideia que não existe: o conceito pode ser ousado mas é intelectualmente deficitário.

(Perante este exemplo acabado do seu trabalho, o mínimo que se pode dizer é que não há confiança nos livros de escrita criativa que Pedro Sena-Lino também editou através da Porto Editora, sobretudo considerando que um deles é dedicado à criação de personagens.)


despaís (Pedro Sena-Lino)
Porto Editora
1ª edição - Julho de 2013
336 páginas

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