domingo, 10 de novembro de 2013

Correr para lá do fim

O livro começa com um Emil Zátopek sem qualquer gosto pela corrida, o mesmo que eu sinto sobre tal actividade.
Isso não se alterou, mas no fim do livro quase saí à rua para tentar descobrir por mim próprio as emoções de correr como Jean Echenoz as descreve para o mítico corredor.
Correr - simples mas preciso título - trata-se de um livro capaz de traduzir em palavras essa energia incessante de uma corrida competitiva.
Uma energia que, nos casos dos percursos longos de Zátopek, está em reserva mas sempre no ponto prestes a libertar-se, que é uma associação que se pode usar para falar do livro de Jean Echenoz.
Um livro breve este, que tem de usar os destaques de uma vida para a descrever na totalidade, sabendo mesmo assim deixar correr a prosa em momentos de uma inocência humana que deveria ser estranha à vida de um grande corredor.
A escrita de Jean Echenoz aprecia-se pela sua beleza económica, que galvaniza por moldar e aprofundar a figura de Zatópek sem se demorar em digressões intelectuais - e interiores.
Uma beleza nascida dessa tal simplicidade da qual emana algo de essencial, tal como a profundidade da personagem que o livro descreve nasce da simplicidade de um homem ao encarar a vida.
Um corredor define-se pelo movimento e o escritor sabe, em sintonia, definir o homem por detrás do equipamento de acordo com as suas acções.
Por mais corridas que o livro descreva, se há algo que não sai da cabeça do leitor é o momento em que Emil Zátopek chega ao Brasil para mais um grande evento mas logo se tranca na casa de banho de forma a confirmar que o movimento da água no ralo tem o sentido inverso ao que tem no hemisfério Norte. Um corredor de enorme sucesso rendido à curiosidade científica de uma criança define este homem e agarram o leitor por completo.
Se procurarmos as corridas de Zátopek, acabaremos comovidos ou arrepiados - pela montagem, pela música - mas estas palavras arrebatam e os feitos do corredor parecem ainda mais extraordinários assim, lidos.
Um homem meritório de ser tratado com o respeito que as suas vitórias lhe proporcionavam, pois se se tratava apenas de um bom homem que não conseguia deixar de correr, fazia-o com nobreza, mesmo no declínio físico - que sabia reconhecer e ao qual se sabia adaptar.
A sua grandeza nascia da inconsciência da mesma: Zátopek inventou o sprint final porque não gostava de correr olhando as costas alheias.
Por essa grandeza que andava de mão dada com a inocência é que a figura de Zátopek permite ao autor fazer um retrato do Bloco Leste durante a Guerra Fria em que se destaca a pequeneza assustada.
A História da URSS poderia dizer-se ter evoluído colada à individualidade de uma das suas figuras ímpares, mas no sentido inverso: quanto mais Zátopek era impedido de crescer, mais o governo soviético saía diminuído por não querer ser ofuscado.
A repercurssão nele, figura maior e figura útil ao regime, dão uma ideia clara das forças e fraquezas daquele mundo.
Vemos quão absurdas são as atitudes generalizadas, que apenas permitem começar a imaginar como seria a vida para aqueles que nada tinham que os distinguisse - e, portanto, uma opinião pública a seu favor, mesmo para lá dos países Comunistas.
O Emil Zátopek de Correr é, pelo esclarecimento da vida pessoal e pelo ensinamento da existência social, um homem maior do que deveria ter calhado à URSS ter entre os seus.
Alguém que treinava loucamente porque não sabia que deveria ter um treinador, uma estratégia, gerir o esforço.
Tinha sido mandado correr pelo exército - e tinha desde logo ganho - sem que lhe ensinassem nada. Mas depois haveriam de o querer dominar de novo.
Fez-se corredor sozinho, sem gostar de tal actividade, e depois tornou-se no homem que corria enquanto houvesse pista e enquanto houvesse fulgor em si.
Conquistas e feitos eram bons, mas ele aspirava somente a correr por correr: a pureza do movimento sem preocupações de beleza.
A cabeça torta, o esgar horrível e o estilo descompassado. Os elementos que lhe permitiam adaptar-se à corrida, o corpo moldado à actividade e aos muitos metros que tinha pela frente.
A pureza de quem foi correndo até gostar... e se tornar vencedor, apenas porque quem chega primeiro assim tem de ser declarado!
Para quem termine este livro, Zátopek nunca deixará de correr.


Correr (Jean Echenoz)
Cavalo de Ferro
1ª edição - Março de 2011
128 páginas

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