quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Fotos sem memória

Marginal, a linha que liga Cascais a Lisboa e que separa uma classe alta de uma classe trabalhadora, tornando uma mulher marginal entre a família do seu marido.
Uma mulher que encontra na Revolução dos Cravos a sua própria transformação pessoal, momento de libertação.
Se os relatos (ficcionais) nos dizem que o Maio de 1968 levou os Franceses a fazerem uma revolução sexual, aqui descobrimos que o Abril de 1974 exigiu na nossa terra - um país parado no tempo - uma revolução da sexualidade: a mulher a ter de encontrar o seu papel na sociedade e um espaço onde possa viver de forma independente.
Essa mulher recorda o seu universo circunscrito àquele  e àquele tempo transformador, comandado por uma série de fotos resgatadas ao seu extermínio.
O cenário inicial é uma ideia tão forte que poderia ser a premissa de um conto de Kafka ou de uma ficção de Borges.
Uma rapariga encontra no lixo uma quantidade imensa de negativos de fotografias da sua vida e da sua mãe que nenhuma das duas alguma vez viu.
Fotos que arrastam a mulher para uma viagem por dez fotos e décadas de vida, mais de sofrimento do que alegrias.
As fotos antes da era digital eram usadas com cautela e raramente. Registos de obrigação, de aparências, tiradas nos momentos em que as pessoas e as famílias deviam parecer felizes.
Algumas tiradas em momentos significativos, as outras tiradas em momentos de acontecimentos pouco habituais.
Todas elas dependentes de uma excepcionalidade que não fala do quotidiano. Não se faziam - e nem hoje se farão - fotos das tragédias verdadeiramente transformadoras.
Essas tragédias são, muitas vezes, momentos a solo: descobertas interiores que não permitem continuar a ver o mundo da mesma forma.
As fotografias contrariam essa mudança, preservando a memória de um mundo que deixou de existir, que nunca existiu senão para a foto: "Sorriam!"... mesmo que não o sintam!
Por isso é que os negativos são, de facto, lixo. São-no no início do relato e depois confirmam-se como tal no final.
Os negativos fixam o tempo e o local, o quem e o como. Por isso os negativos obrigam a sofrer a tristeza das transformações com que a pessoa lidou antes, transformando a realidade em memórias pessoais.
Essas, ao contrário das fotografias, é pessoal e intransmissível. Moldada por cada um como melhor lhe serve a vida.
A memória não deve ter registos, deve poder estar dependente da vida que cada um leva no Presente e não do que os outros nos dizem com os momentos fotografados que ficaram para trás - afinal, há sempre outro alguém atrás da câmara!


Marginal (Cristina Carvalho)
Planeta Manuscrito
1ª edição - Janeiro de 2013
152 páginas

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