quinta-feira, 14 de julho de 2011

Humor sem revisão

A segunda vinda de Cristo ocorreu nos anos 1930 no deserto do Chile. Por lá vagueou esse homem admirável que se bufava, que ressonava, que se masturbava atrás dos arbustos e que se saciava (ocasionalmente) com as suas devotas admiradoras.
Era um homem abnegado que dormia ao relento, que possuía um mero saco de papel com uma muda de roupa e uma Bíblia.
Admire-se o seu grande milagre que foi a ressurreição de uma galinha. Não parece muito, mas era uma galinha que garantia ovos com duas gemas, um milagre em si mesmo.
Mas, pergunto eu, para que precisou este Cristo de uma Bíblia? Não deveria ele saber as suas palavras de cor?
Não era ele muito mais homem para que precisasse de uma meretriz caminhando lado a lado com ele o tempo todo?
Sim, este Cristo buscou uma mulher para ser a sua discípula mais fiel, uma mulher chamada Magalena que se dedicava à prostituição.
Dedicava, assim mesmo. Era uma "santa puta", admiradora maior de Nossa Senhora e prostituta por necessidade de fazer viver o martírio ao homem - um padre, ainda para mais - que a martirizou enquanto criança.
Vendia o corpo para sustentar-se como a sombra acusatória de um padre pedófilo que fugia de aldeia em aldeia daquela mulher que até poderia ser a sua própria filha...
A mais recente aldeia serve o cenário para este delicioso (e, possivelmente, controverso) pedaço de fino humor onde se cruzam estas vidas com a vida de uma fábrica onde ocorre uma greve.
Um greve na qual, aos direitos dos trabalhadores, se junta a reivindicação pelo retorno de Magalena, entretanto expulsa porque a mulher do opressor dono da fábrica ameaça chegar à cidade.
A vida privada e os desejos libidinosos metem-se no caminho da dignidade humana, mas também a ajudam - em solidariedade com a greve, a prostituta ofereceu os seus serviços aos trabalhadores.
Misturam-se política e religião e misturam-se defeitos humanos com expectativas de divindade.
O gozo do livro está no facto de ele não ser crítico mas antes ser irónico com um toque de afecto. No fundamental, isso é  humor, distribuir por todos a visão mordaz dos seus próprios erros. A verdade dita graciosamente (sem a obrigação de ser agradável).
Até porque a figura do Cristo de Elqui vai desaparecer da vida chilena apagada por Charlot, figura ainda mais assombrosa do humor terno que se admira até hoje.
Foi bom enquanto durou para o Cristo, que não chegou a ter discípula, mas que teveos seus momentos de fama e o milagre desejado por todos (que, infelizmente, só ele viu).

Dito isto, aviso que o livro precisava de tradução e revisão mais capaz. Diversos "à muito tempo" povoam o texto e as transições internas de tempos verbais ao longo de um único parágrafo, aparentemente originárias do próprio texto, nem sempre são devidamente acomodadas de forma a fazerem o sentido que devem ter.
Não é uma enfermidade que deixe o livro totalmente ilegível mas é motivo de algum sofrimento.


A arte da ressurreição (Hernán Rivera Letelier)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Janeiro de 2011
280 páginas

Sem comentários:

Enviar um comentário