Pensemos no episódio que nos contam sobre a Torre de Babel e entendamo-la agora com um olhar renovado.
Não terá o "pai do mundo" - chame-lhe cada qual como lhe aprouver - descoberto que a linguagem comum que o ameaçava era a linguagem que permitia aos seres entenderem-se?
Não terá o "pai do mundo" achado que a torre que os seres erguiam e que o ia alcançar era o entendimento que os levaria a ser capazes de fazer do mundo o que ele tentara sem conseguir?
Não terá o "pai do mundo" destruído essa torre, melhor dizendo a Língua do Mundo, para que não houvesse forma do conjunto dos seres fosse tão dono do espaço e do destino como quem o criara?
Ou seja, o "pai do mundo" sentiu-se afrontado pela mãe natureza e na disputa entre progenitores quem pagou foram os seus filhos a quem roubaram a possibilidade de partilharem um mundo em que todos poderiam caminhar erguidos, quer caminhassem erectos quer não.
O mais provável é que o "pai do mundo" tenha sentido que a sua criação mais demorada e complexa tinha de se superiorizar às restantes para que ele fosse louvado e admirado por um acaso de sorte, acabando por atirar com os pobres animais para um desentendimento geral. Ou, ao menos, um desentendimento absoluto com os homens que não conseguem, assim, valorizar o que os animais têm para lhes ensinar.
E muito têm eles para ensinar, como bem mostra Batalha, uma ratazana de sentimentos admiráveis.
Admiráveis tanto porque são os mais dignos como porque resistem por entre os instintos animais primários que surgem contra o pior tratamento que lhe dá o mundo.
Os animais falam-nos (e censuram-nos) pela nossa forma de sermos humanos melhor do que as formas que criamos por nós mesmos.
Sobretudo Batalha, melhor humana do que nós seremos - nós somos os ratos de maus instintos, alegres por chafurdar no nosso próprio lixo existencial. E por isso Batalha merece a Torre de Babel que lhe erguem, monumento real, mas sobretudo monumento de memória.
Batalha enternece-nos por essa grandeza nascida ao nível do solo. E pelos olhos dos animais perscrutamos o divino. E pela boca dos animais ouvimos a fala comum.
Da Religião e da Linguagem escreve David Soares, de uma forma inesperada e com uma qualidade vocabular inexcedível.
A admiração pela demanda das palavras esquecidas, inabituais ou, tão somente, estranhas é de uma grandeza que perdura(rá) para lá da força reflectiva do livro, ainda que essa qualidade acabe por contrariar um pouco a conversão da idealogia textual na forma do discurso.
Batalha (David Soares)
Saída de Emergência
1ª edição - Maio de 2011
208 páginas
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