quinta-feira, 30 de junho de 2011

De Robocop a Jesus

Este foi um dos livros que li com mais urgência em tempos recentes, apesar de preferir ficção a ensaios ou outras formas de divulgação de um determinado tema.
Neste caso, no entanto, a abordagem de Paul Verhoeven a Jesus parte daquilo que muitos reconhecem como "A Palavra de Deus", primeiro destituindo-a de um significado sagrado que sirva de barreira à racionalidade e, depois, pegando na Bíblia tanto como fonte histórica como trabalho literário.
Aquilo que ele faz com os evangelhos é radical, para todos os que não têm acesso às bases teologais e, sobretudo, para os leigos católicos que há tão pouco tempo (décadas no contexto de uma religião de dois mil anos) têm acesso ao texto bíblico e que, por isso, parecem ter pouco sentido crítico para o lerem a solo.
Esta é uma abordagem que acaba por olhar a elaboração literária dos quatro evangelhos que foram incluídos na Bíblia, a variação dos seus redactores, as influências ou adaptações de fontes prévias e as opções editoriais de acordo com as necessidades que as comunidades cristãs tinham na época. E, a par disso, dos evangelhos que ficaram de fora e dos seus propósitos - como o de Maria de Magdala que pretendia dar mais poder às mulheres no sei da Igreja que se formava.
A Bíblia foi, nos primeiros séculos após a morte de Jesus, um livro com um propósito didáctico e manipulador (sem juízo crítico da minha parte), o que influenciou por completo o labor dos seus escribas.
A existência de inconsistências é um dado importante que a leitura esparsa e dominical dos evagelhos não permite percepcionar.
Inconsistências de estilo da voz narrativa de Jesus, inconsistências temporais entre evangelhos, inconsistências de continuidade ao longo de um relato, são todas fruto do trabalho de edição que tanto escondia verdades inconvenientes como adicionava necessidades interpretativas.
O olhar para o texto como trabalho com mútiplos autores é parte fulcral no objectivo do autor e uma perspectiva apelativa de tratar um livro tão importante para a actualidade da nossa sociedade como um livro idêntico a todos os outros.
A construção do que Verhoeven chama o "Jesus histórico" não é, no entanto, fruto apenas de tal análise. Há alguma especulação da parte do autor, bem como diversas escolhas entre fontes teologais - em muitos casos minoritárias mas consentâneas com o entendimento de quem escreve.
Acima de tudo, é a visão pessoal de um estudioso - único elemento sem formação teológica a ser aceite no Jesus Seminar - dos muitos anos a ler textos sobre Jesus e textos elucidados sobre esses textos, mesmo que parte destes últimos fossem tendenciosos ou estivessem constrangidos pelo contexto histórico.
Aquilo que se pode dizer é que o resultado final do olhar de Verhoeven para Jesus é consistente e plausível.
Este é o autor que conseguiu representar um Jesus para o século XX através do seu filme Robocop. Por comparação, este seu trabalho parece mais simples e até menos polémico. (E bem menos polémico do que se quer fazer anunciar.)
Não é definitivo, não vem desmentir de forma cabal outras noção e outras interpretações dos eventos descritos - e rescritos, rasurados, rearranjados, reordenados - nos textos.
Está certo afirmar que é um texto com revelações chocantes para aqueles demasiado agarrados a uma crença estrita, mas não é um texto que derrube as hipóteses de fé que muitos têm. É um argumento racional para a perda de uma forma de extremismo que está vivo no olhar literal para um Livro Sagrado.
O texto é uma introdução breve à Teologia, mas uma com personalidade (e Verhoeven tem-na e vincada) e que, tal como os textos sobre os quais trabalha, não pode ser aceite sem sentido crítico. Essa será a lição maior do livro.


Jesus de Nazaré (Paul Verhoeven)
Guerra & Paz
1ª edição - Março de 2011
336 páginas

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