quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Pretensões não pretendidas

Nocturno é, como bem anuncia, o romance de Chopin, uma pequena ficção em torno da paixão que ele viveu com George Sand.
Não tem pretensões de ser uma biografia, tem apenas a intenção de ser uma bela variação poética(?) em torno desse grande amor.
Só que apesar de bem escrito, com algumas passagens de inegável riqueza, acaba por não ser mais do que uma versão literária das produções cinematográficas que assinalam as efemérides com uma produção altamente focada na dimensão sentimental de uma vida cuja importância cultural para a Humanidade é altamente superior a isso.
Nota-se que há momentos em que o romance parece pretender ser uma versão literária do romantismo do músico.
Há momentos em que o romance parece prestes a arrancar para uma sugestão da dualidade dos sentimentos de Chopin.
Aí está o problema, as melhores pretensões do livro são, afinal, apenas nossas, pois o livro não tinha senão a intenção de ser um pequeno devaneio estilístico.
Isso acaba por ser insuficiente para o leitor que começa a pedir mais à medida que a sua estadia no seio do livro se prolonga.
A culpa pode então ser do leitor que perde a noção das simples pretensões iniciais do livro.


















Nocturno - O Romance de Chopin (Cristina Carvalho)
Sextante Editora
1ª edição - Novembro de 2009
182 páginas

domingo, 24 de janeiro de 2010

Apresento-vos o inspector Méndez

Méndez persegue os criminosos mesmo sabendo que eles lhe fugirão. Mas persegue-os para que eles escapem aos restantes polícias e assim possa manter a estrutura do seu pequeno mundo.
Ele salva os pequenos criminosos que já conhece para que não os veja substituídos por outros que estejam para lá da sua esfera de entendimento e conforto, para que os pequenos criminosos possam escapar à (in)Justiça da Lei que ele serve mas não deixa de criticar.
Lei que ele só invoca quando lhe convém usar o Artigo 26 para dar, afinal, ao povo o poder que não tem, e assim evitar que alguém seja preso por mera burrice:

Pelo artigo vinte e seis
o Governo tem atribuições
para passar pelos colhões
todas as leis do país.

Méndez luta pela preservação da Barcelona que conhece para que esta não se renda à modernidade que o deixará desfasado daquilo que ainda é o seu familiar "bairro"
Luta também pela decência das mulheres desprezadas e usadas de Barcelona, que vendem o amor que têm para dar, seja por dinheiro ou por uma mera ilusão de felicidade.
Por isso se rege por um ideário que é só seu, o que muito irrita os seus chefes e colegas e muito o compromete, mas que o mantem fiel a si mesmo, o que para ele é a única bitola que lhe interessa.
Ele insiste na sua forma de tratar dos casos - que nem sequer lhe dizem respeito - porque confia no seu instinto, no seu interesse pelos pormenores que os outros parecem desprezar.
Só que, aqui interessa menos o que ocorre do que a personagem que circula no seio da trama. Um pouco como Philip Marlowe, se este tivesse entretanto envelhecido e tornado-se ainda mais cínico.
Méndez podia estar agora a conviver e a trocar irritações com Nero Wolfe ou com Salvo Montalbano. É um personagem com as qualidades clássicas de um detective capaz de se afirmar no imaginário global.
Em boa hora a Contraponto trouxe Méndez ao convívio dos portugueses - na verdade já o tinha feito por via do Quinto Selo em 2007, mas confesso que nessa altura estava desatento - e por isso vos apresento o inspector Méndez. Façam o favor de lhe dar a muito merecida atenção!


















A Dama de Caxemira (Francisco González Ledesma)
Contraponto
1ª edição - Junho de 2009
200 páginas

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Pontapé de ressalto

Invictus é uma magnífica reportagem cujo cerne é o dia em que a África do Sul ganhou o Campeonato do Mundo de Râguebi em 1995, mas que por necessidade e atravessa um período muito mais extenso.
A inteligência de John Carlin está no suspense com que nos relata a história, ainda que o seu resultado seja conhecido.
Carlin deixa-nos expectantes logo no início para depois se desligar do dia do jogo e enveredar por relatos aparentemente laterais que acabarão por se voltar a unir ao relato central.
Esses relatos servem para algo mais do que estruturar a realidade do que se passava na África do Sul até à final de 1995, serve para dar uma noção pessoal e contrastante do que as várias secções do povo sentiu.
Esta dimensão pessoal permite que nos relacionemos a fundo com esta história de uma equipa para a qual a vitória era improvável e que sofreu a um ponto que mais parece ficção para a conseguir. Com a história dos gestos de um povo que tinha tudo para se destruir na sua divisão mas que acabou por se unir para lá de qualquer expectativa mais favorável - excepto, talvez, a de Mandela.
É a visão da extraordinária dimensão do desporto e dos inesperados resultados das emoções que gera. Mas é tambéma visão daquilo que já tem de existir anteriormente à concretização desportiva para que esta assuma contornos de revolução.
Esta equipa superou-se por se ver carregada com um propósito que superava o da mera vitória, por se ver vitalizada pela personalidade de um homem excepcional como é Nelson Mandela.
Sem que esta seja uma obra directamente dedicada a Mandela, proporciona-nos uma visão importante da superação humana que ele alcançou ao mesmo tempo que nos demonstra o brilhantismo político que ele usou a seu favor sem que se tornasse em cinismo.
A reportagem não é, por si só, conclusiva, nem a tal aspira, como fica bem patente no epílogo. Cabe ao leitor interrogar-se depois e procurar compreender até que ponto a exaltação sentida naquela data foi algo de temporário e que esteve longe de ser um milagre que tudo curou, mesmo que nem isso retire sequer uma pequena parte do poder que um pontapé de ressalto teve para a consciência de todo o nosso mundo.


















Invictus (John Carlin)
Editorial Presença
1ª edição - Janeiro de 2010
288 páginas

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Transformação

A falha de que aqui se fala é aquela que estas personagens apenas compreenderão depois de tombarem na falha real da pedreira.
É a falha que impede que eles vejam que não se possa retornar a um passado que não era ideal mas que de certa forma os contentava.
Que é impossível perpetuar a felicidade que vivia de uma suposta inocência, tal como é impossível fazer a catárse daquilo de que se afastaram há muito.
A falha que corta todas as possibilidades deste grupo se voltar a relacionar com a terra que abandonaram.
A falha que atravessa, afinal, um país, falsamente púdico, falsamente corajoso, falsamente respeitador, falsamente brando, falsamente tradicional.
Um país que se revela, depois, na sua verdadeira natureza, animalesco, paranóico, louco, violento.
Um país que podemos ainda ler como o próprio mundo, como a generalidade da humanidade.
A falha destas personagens está na sua necessidade de tocar a loucura ou o desespero para conseguirem reformar a percepção que eles e os que os rodeiam fazem de si próprios.
A falha está na incapacidade de se olharem e assim se transformarem, a menos que estejam ameaçados para lá dos limites do saudável.
Estiveram sempre demasiado longes de quaisquer verdadeiras exigências para terem de revelar os seus reais instintos. Até à falha, claro!


















A Falha (Luís Carmelo)
Publicações Europa-América
Sem indicação da edição - Dezembro de 2009
160 páginas

domingo, 10 de janeiro de 2010

Memória com cinema dentro

Os comunistas derrotados por Pinochet são agora quase ridículos.
De jovens reaccionários chegaram a velhos que procuram namoradas em sites da internet e contam com a noção do ridículo as peripécias dos seus tempos de militantes activos.
Estão agora reunidos para se reabilitarem perante si mesmo, para se recompensarem por aquilo que o seu país lhes negou.
Mas aquele que deveria liderá-los, o Sombra, um mestre Zen da revolução, morre a caminho da reunião ao levar com um gira-discos na cabeça que uma mulher zangada atira pela janela para se vingar do marido.
E é o marido dela que assumirá, então, o lugar de o Sombra, ele próprio um revolucionário tornado cinéfilo, com dotes de argumentista sem público.
Só que o grupo segue mesmo assim para recuperar o dinheiro de um dos velhos bancos ilegais que haviam sobrado quando o golpe de estado ocorreu.
Estamos perante uma comédia, feita de velhas memórias, esperanças aparentemente derrotadas e finalmente do sucesso inesperado e contra todas as previsões.
Contra os vários percalços eles lá conseguirão recuperar o dinheiro.
Por entre a tristeza natural que os ensombra, por entre o retorno das tristes memórias do que perderam com o tempo, conseguem uma recompensa para o que foram. O país finalmente dá-lhes algo de volta.
Algo que é, afinal, mais do que o dinheiro, é o estranho reconhecimento de memória que o detective a investigar a morte do Sombra tem para com eles, como se ele fosse o retrato da memória do próprio país, uma memória menos padronizada e mais revisionista para com heróis feitos dos eventos aparentemente menos admiráveis.
Um detective como já não se fazem, saído de um velho filme de Hollywood que o marido a quem agora falta um gira-discos tanto admira.
Podia ser o argumento de um filme, inusitado, feito sobretudo da preparação para os acontecimentos, com personagens caricatas a superarem-se a si mesmas. Podia ser uma simples revisão do que significaram estes homens para o Chile. Mas é a junção de ambos que o torna interessante.




















A sombra do que fomos (Luis Sepúlveda)
Porto Editora
1ª edição - Outubro de 2009
160 páginas

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

"Onde não há imaginação não há horror"

O título da crítica de hoje é uma citação de Sherlock Holmes retirada de A Study in Scarlet, aproveitando o revisionismo e a memória que por estes dias o personagem de Sir Conan Doyle tem vindo a merecer.
A frase não poderia calhar melhor para falar de O Terror, um conjunto de três contos onde o assombroso fantástico se insinua na realidade, não só porque Arthur Machen é um autor que influenciou o criador de Holmes - e cito a contracapa do livro, não arriscando qualquer pressuposto que não tenho autoridade para fazer, ainda que no conto A Mão Vermelha isso seja fácil de perceber - mas acima de tudo porque é uma explicação cabal do que aqui se lê.
O medo que grassa nestes contos não nasce da essência dos actos que ocorrem, mortes brutais e inexplicáveis, mas de toda a espécie de especulação que estes originam pelo seu mistério.
O medo está nas teorias segredadas, cada uma mais implausível e feroz que a anterior.
O medo induz a imaginação que induz um medo ainda maior. As pessoas colocam-se a si próprias nesse estado de receio, são as suas maiores atormentadoras.
O Terror nasce onde há imaginação, pois cada nova teoria induz mais e mais a certeza de uma causa que é vontade do Destino e, por isso, incontrolável.
Ter medo de algo que é tão extravagante que não pode ser imputado aos que o receiam é, ao menos, mais fácil de aceitar do que algo que esteve sempre perante os seus olhos e ninguém cuidou de avaliar seriamente.
Porque, verdadeiramente, o medo nasce da teoria inominada, da teoria que é plausível e que, por isso, todas as mentes rejeitam.
Como escreve Machen, perante a dúvida, acabar-se-á por "escolher qualquer explicação em detrimento da mais óbvia, dado que o óbvio seria demasiado chocante".
Se se aceitasse a explicação mais óbvia, então não seria terror mas culpa o que se sentiria. E é mais difícil de viver com a culpa do que com tudo o o que a imaginação consiga produzir.
O Terror de Machen é, provavelmente, um desafio cada vez maior para os leitores modernos, mais informados e mais seguros dos seus próprios conhecimento e pensamento lógico, também por isso mais cépticos e mais facilmente aterrados pela explicação óbvia.
Vale mais, então, deixarmo-nos levar pela imaginação para melhor desfrutar desta obra.





















O Terror (Arthur Machen)
Saída de Emergência
1ª edição - Outubro de 2009
176 páginas

domingo, 3 de janeiro de 2010

Instantâneos

Para lá do drama de duas irmãs que sempre permanecerão juntas, desde a vida fácil e feliz de Xangai à adaptação à vida em Los Angeles, com todas as dificuldades e dramas que surgirão de permeio e mesmo depois disso, Raparigas de Xangai é também um interessante retrato das difíceis condições que os emigrantes chineses sempre sentiram nos Estados Unidos da América.
A sua segregação permanece uma constante, bem como o medo que sentem num país que chega a usá-los mas nunca a aceitá-los.
Primeiro sendo sistematicamente perseguidos por medo da invasão ilegal, depois úteis no esforço de guerra para verem a sua adquirida nacionalidade contestada pelo fantasma da Ameaça Vermelha.
Nesse sentido, compreende-se perfeitamente que esses emigrantes sejam cada vez menos aceites, pois ao verem-se mal tratados, retornam a uma tradição que, mesmo que nunca antes lhes tenha dito nada, passa a ser um ponto de conforto para eles.
Fecham-se sob a própria família e sob o próprio povo para se sentirem seguros, não entendendo que assim perpetuam o preconceito que já tinha levado quem os deveria acolher a segregá-los.
A abertura é impossível, um ciclo vicioso de medo comum a ambos os lados, mesmo quando os chineses emigrados podem fazer negócio com os americanos e os americanos se podem divertir com o "exotismo" dos costumes chineses. Nenhum destes povos, no entanto, admitirá mais do usar o outro.
O caso exemplar disso mesmo é Chinatown, um bairro que permite que confluam essas vontades, ilusória fonte de turismo e genuinidade, um gueto embelezado e útil.
O que é uma pena é que em vez de uma saga familiar, Raparigas de Xangai acaba por se parecer mais com o saltitar temporal de um álbum de fotografias.
Se ao nosso lado tivéssemos a matriarca da família a relatar-nos aquilo que não vemos entre cada instantâneo, teríamos uma narrativa extraordinária.
Ao folhearmos as páginas por nossa conta, ficamos apenas com algumas ideias repletas de pormenores mas soltas na nossa mente.





















Raparigas de Xangai (Lisa See)
Bizâncio
1ª edição - Novembro de 2009
352 páginas