quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Viver a neblina

O foco d' A Hora das Sombras está nas suas personagens e ainda que seja um policial pleno, é sobretudo um olhar sobre as brumas em que as pessoas vivem quando presas pelo sentimento de perda.
No centro da história está uma perda com vinte anos, de Jens ainda criança. Julia ainda vive esse momento do desaparecimento do filho que ficou por resolver.
O pai dela pode agora estar na pista do que aconteceu, tendo recebido pelo correio um dos sapatos que o neto calçava.
Apesar de sofrer do doloroso e debilitante Síndrome de Sjögren, Gerlof persegue esta pista com determinação ainda antes de chamar a filha de volta à ilha que abandonou.
Gerlof perdeu, além do neto, a filha (e também a irmã desta) que se afastou dele culpando-o pelo desaparecimento de Jens. Na tarde em que o rapaz desapareceu ele tinha ido pescar.
A sua demanda como detective é uma urgência iniciada pela recepção do sapato mas movida por essa necessidade de recuperar a ligação à filha - e, em parte, recuperar alguma da sua função na vida.
Julia cede em regressar à ilha para vir atrás da recuperação de si mesma na forma de uma resposta para o que aconteceu que lhe dê um sentimento de conclusão, ainda que nunca lhe dê descanso.
Como também a recuperação de um mérito para o sofrimento de tanto tempo, que o ex-marido foi capaz de deixar para trás e do qual a irmã lhe diz para se libertar.
O senso comum alheio está contra a investigação dos dois e tem de ser a morte de um amigo de Gerlof a mostrar que talvez ainda haja sentido numa investigação de um caso já tão "frio".
A eles junta-se, em certa medida, um polícia que perdeu o pai há muitos anos atrás. Que é polícia, precisamente, porque o fora o pai.
A sua recuperação é da memória do pai, assassinado há quase cinquenta anos atrás por Nils Kant, rico e mimado local que deixou atrás de si um rasto de crime e suspeitas.
Nils Kant é uma assombração dita em surdina, um homem morto que é visto em todos os males que ainda acontecem na ilha.
Também a história dele nos é contada, da sua juventude de crueldade em que deixou o irmão morrer ao fim da Segunda Guerra Mundial quando mata dois soldados alemães em fuga e da sua fuga para a América do Sul até ao seu regresso no dia em que Jens desaparece.
Estamos perante um rapaz cruel e insensível que, apesar de tudo, se torna também vítima da perda. Perda da mãe - e da mãe pátria! - que nunca mais pode ver, por culpa própria mas também por manipulação alheia.
Nem ele, como vilão que fora, permanece sempre como encarnação do mal.
Desde o início do livro há uma certeza, de que Nils e Jens se cruzaram naquela tarde de neblina cerrada.
A conclusão óbvia, no entanto, é desmentida e a verdadeira revelação coloca em causa a justeza de reduzir qualquer personalidade a "homem bom" ou "homem mau".
A vida de Nils Kant corre em paralelo à investigação comandada por Gerlof, caminhando o Passado para se encontrar com o ponto de início da história que mantém a vida de Julia em suspenso.
O que Johan Theorin faz com mestria é usar esses dois tempos de história para colocar-nos na pista de uma resposta que não seja apenas uma revelação bombástica.
Dar-nos a conhecer como os eventos do passado encaminharam os personagens para o seu estado presente. No fundo, mostrar como a ilha carrega consigo uma carga latente de destruição.
Uma carga que a ilha parece fazer descer sobre os seus habitantes através da cerrada neblina.
Öland é o seu nome e aquele espaço geográfico é tanto um personagem como todas as pessoas que a percorrem.
A sua atmosfera intervém na história, talvez até mais do que as decisões das pessoas. É a sua neblina que faz desaparecer Jens aos olhos do homem que se cruza com ele naquela tarde de há vinte anos e ao coração daqueles que o ama ainda mais desde então.
A bruma da ilha é verdadeira mas é, também, a condenação emocional para todos os que a atravessam e a respiram. Como se a ilha os penetrasse ao respirarem a neblina e nunca mais os abandonasse, por mais que se afastem, a crueldade ou o falhanço permanecem dentro deles.
Johan Theorin tem neste seu primeiro livro a técnica de um grande escritor mas é na sua criação de um ambiente tão importante que se torna no personagem maior do livro que ele distingue ainda mais.


A Hora das Sombras (Johan Theorin)
Porto Editora
1ª edição - Novembro de 2014
384 páginas

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