sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Crítica e carinho

Uma criança leva à boca um osso humano, assim revelando um corpo enterrado há décadas e um possível crime há muito mantido em segredo.
A criança e o cadáver poderiam levar a leituras banais sobre o ciclo da vida apenas se não se ler a ironia da situação.
O osso é identificado durante uma festa de anos. No meio da maior da alegria ergue-se o trevor que alguém conseguira manter abafado.
Numa sociedade vista - oficialmente, agora - como das mais felizes do mundo, este é o aviso de que o livro tem, de facto, o carácter de Noirdico que ainda não deixou de conquistar os leitores. Ou seja, uma exploração da podridão escondida pouco abaixo da imagem de superioridade social.
A investigação é levada a cabo pelo inspecto Erlendur que se vê contrariado por quase todos, que lhe dizem que as suas linhas de investigação não fazem sentido ou que passado tanto tempo não vale a pena perseguir aquele caso.
Ele fá-lo, porque até um corpo enterrado ali logo após a Segunda Guerra Mundial merece ver a sua história revelada. Até porque são dois corpos que lá estão, o segundo de um feto ou de um bebé nado-morto.
A ideia de que o corpo pertencia a uma mulher assume alguma preponderância mas a confirmação demora pois para o desenterrar são chamados arqueólogos que demoram tempo demais, recolhendo cada porção de terra a um ritmo que é só deles.
Uma outra dose de ironia do autor, agora para com as prioridades da sua sociedade, em que a precisão do trabalho de campo se torna mais importante do que as respostas sobre as pessoas.
Por isso o inspector tem de ir perseguindo outras pistas, tão antigas que quase não existem mais.
Pistas e algumas coincidências, que estas últimas serão a chave final para responder às questões sobre a quem corresponder aquele esqueleto.
Pistas que remetem para outros crimes passados e que, então, ficaram igualmente sem resposta.
O jogo de Arnaldur Indriðason com a dúvida que paira na história é particularmente bem sucedido à medida que os arquélogos levam o seu tempo a desenterrar o corpo.
Isso permite que a história que vamos conhecendo de uma mulher e filhos vitimizados pelo marido/pai na Reiquejavique da segunda metade da década de 1940 nos encaminhe para uma expectativa que é contrariada com uma reviravolta que é uma revelação de carácter e não uma surpresa transformadora do próprio sentido da história.
Esse final torna A Mulher de Verde numa leitura ainda mais gratificante, compensadora do controlo que o leitor tem sobre o leitor, em parte exasperação, em parte empolgamento.
Arnaldur Indriðason vale-se de uma escrita que é eficaz, onde os diálogos são importantíssimos, sem que deixe de explorar os seus personagens de forma incisiva.
O drama social acompanha-os, não se resumindo à violência doméstica do passado, mas também ao risco da droga que causa o drama familiar do próprio inspector.
Tal integra-se bem no mosaico de mordacidade e acusação que é o livro, dando a esta cidade Islandesa uma dose de comoção que lhe traz complexidade humana, em vez de um antro onde o autor poderia lançar raízes de muitos outros crimes.
Crítica e carinho com uma cidade e uma cidade que são as suas, o que faz de Arnaldur Indriðason um autor a merecer destaque.


A Mulher de Verde (Arnaldur Indriðason)
Porto Editora
1ª edição - Abril de 2014
264 páginas

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