sábado, 5 de junho de 2010

Alienado de si mesmo

Um homem não se perde quando dá por si sem saber o caminho de casa num país cuja língua desconhece.
Um homem perde-se quando tem de abandonar o seu próprio país convicto de que lá nada de bom lhe resta.
Depois, o seu périplo desventuroso pelo labirinto que é uma cidade ininteligível por completo, é a concretização do seu desmembramento interno.
Anda à deriva com a mulher e o filho ao lado, tentando, sem qualquer sucesso, reencontrar o caminho para casa.
Mas a sua deriva, que começa pela falha de comunicação, cresce porque ele é incapaz de dialogar com a sua própria existência.
Este homem não acredita em nenhuma das suas decisões, não se aceita como pessoa, nem sequer se permite manter num percurso que tenha sido o acaso a decidir de tão paranóico com o falhanço - o seu falhanço, sempre, obviamente. Mesmo quando toma a decisão de recorrer ou matar Deus, tem relutância em depois aceitar e manter tais actos, retirando a promessa de retribuição ou restituindo-lhe a vida, porque não acha sequer que Deus lhe possa emendar a existência errante. Nada de si mesmo lhe parece correcto.
Daí que lhe seja impossível atravessar o mundo em linha recta. A sua deriva é física porque não resta outra forma de expressão à deriva da sua existência.
Um homem alienado de si mesmo é um homem para quem não há esperança, a menos que ela venha do exterior de si. Seja este emigrante sem conhecimentos da língua ou seja outro homem qualquer com a vida de aparente normalidade.

Ricardo Adolfo trata as palavras com uma mestria admirável, usando a linguagem ao estilo "da rua" com dignidade e dela retirando os maiores proveitos.
Com termos convencionais, quotidianos e que pouca importância daríamos ele cria parágrafos de enorme força e surpreendente deslumbramento. Uma sofisticação escrita a partir de ferramentas que se diriam toscas.
Ele, que neste momento, olha para Portugal a partir de fora, parece ter uma maior percepção do que por cá se passa do que muitos dos que passam o tempo a opiniar, bem como da maneira mais imaginativa de usar a Língua Portuguesa.


















Depois de morrer aconteceram-me muitas coisas (Ricardo Adolfo)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Setembro de 2009
200 páginas

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