sábado, 12 de dezembro de 2009

Dar força à palavra

Vogam predadores no oceano da memória. Num mundo em que se surfa na informação, nada será mais preciso do que um tubarão para demonstrar como ela pode ser consumida e caçada.
Como muitos daqueles que a consomem podem nunca acabar por produzir sequer uma infíma parte dela.
Mas aqui os rastos da memória são reais e o desgoverno de uma personagem que deixa um rasto mas não o consegue ler é a essência da reflexão que esta obra cria.
Muitas vezes o conhecimento adquirido apenas nos afasta de nós mesmos. A criação - se quiserem chamem-lhe compreensão - de um mundo em torno de nós obriga a que nos recriemos. E se nos recriamos como poderemos alguma vez sermos apenas nós mesmos?
No caso da personagem central, isso está apenas no ponto em que é um facto real, em que a sua primeira encarnação envia informação à segunda, pois esta já nada sabe, realmente, de si mesma.

A imaginação de Steven Hall é um achado e não é estranho que ele escolha as suas epígrafes de Borges ou Calvino, dois autores que pela sua imaginação marcaram tanto a literatura.
O que noutras mãos seria uma distopia é nas dele um hino ao próprio labor da palavra bem estruturado numa estranha e sedutora aventura.
Ele torna as palavras palpáveis no seu mundo. Faz delas tijolos, armas, escudos.
A palavra, a frase, o texto, os livros... Todos são úteis de um modo concreto, seja o som da palavra dita ou a estrutura dos livros empilhados, tudo se concretiza numa estrutura cuja informação que contem lhe dá uma força para lá da que tem fisicamente.
Concreto o suficiente para terem de ser transformadas, pela força da imaginação, naquilo que representam se tal for necessário.
Enquanto Steven Hall demonstra o poder das palavras no interior da história, também o reproduz na sua forma.
Memória de Tubarão escapa a uma limitação formal do que é, como se apresenta ou para que serve a palavra num romance.
Tinha de ser assim, não poderíamos ficar presos a um modelo clássico de estrutura num livro que quer fazer viver a palavra, que lhe quer dar o poder de ser transformadora e transformável.
Por isso a páginas tantas somos perseguidos por um tubarão feito de palavras avulsas. A palavra como constituição da imagem que iríamos criar pela leitura da história. A imagem como reconversão das palavras que já conhecíamos nesse momento.
E embora nunca deixe de ser, em absoluto, uma obra baseada na palavra, é uma obra que extravasa a própria literatura.
Numa sociedade tão imagética, a palavra tem ainda toda a força que lhe quisermos dar, desde que assim o imaginemos, como Steven Hall afinal!



















Memória de Tubarão (Steven Hall)
Editorial Presença
1ª edição - Maio de 2009
436 páginas

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