segunda-feira, 15 de abril de 2013

Irrealismo canalha

Gosto de Charles Bukowski, embora não tenha lido tudo quanto queria da obra dele. Gosto da maneira desabrida como escreve mas, mais ainda, de como esparralha a sua existência nessa escrita.
Um tipo encher os seus parágrafos de peçonha é um efeito que pode dar bom ou mau resultado. Um tipo transformar a sua própria misantropia desanimada em literatura - e com ela criar empatia no leitor - é um feito de que se pode gostar ou não mas não se pode negar.
Li-o pela primeira vez depois de o ver referenciado na contracapa de um livro de Pedro Juan Gutierrez - um favorito do qual prometo (a mim mesmo) reler (mais uma vez...) a obra toda - mas para o qual tem substanciais diferenças que não vou enumerar agora.
Só que como escrevem ambos sem impôr restrições morais às palavras e aos temas, logo catalogaram Juan Gutierrez no mesmo Realismo Sujo (ou não fosse o seu primeiro livro A Trilogia Suja de Havana) de que Bukowski é o criador, o mais merecedor de receber tal classificação nas suas obras e, provavelmente, o único que mais deu sentido à designação.
Confesso que não gosto da designação por não a achar correcta. Talvez seja porque em português o seu sentido se estreita, remetendo para os adjectivos que Scola usou no título do seu filme: feio, porco e mau.
Prefiro chamar-lhe Realismo Canalha, pois tem aquela abrangência que fala de baixeza e inocência.
Realismo Canalha está equidistante da ignorância e do desconhecimento das regras sociais. Ou porque se está numa classe marginal(izada) e elas pouca importância têm ou porque se está numa idade em que se encara o mundo ainda sem essa restrição.
Pense-se que patifarias são actos tanto das crianças como dos canalhas. Mudam apenas as motivações.
Mulheres - o primeiro livro que dele li e o que mais vivamente resiste na memória - era assim, um livro em que não me recordo de uma narrativa mas antes de uma pulsão para ir adiante contando cada uma dos casos cada vez menos satisfatórios que o protagonista vai tendo com mulheres conhecidas por uma noite só.
Como os livros de Bukowski são auto-biográficos, os seus protagonistas são alter-egos e os sentimentos que eles nos merecem são os mesmos que criamos para com ele, autor. Bukowski é, por isso, um simpático sacana de quem é ou muito fácil ou muito difícil gostar. (E a minha posição está assumida desde início, portanto sigo adiante.)
Pois o carácter auto-biográfico é o que liga os seus vários livros, até este que é o seu último. Uma obra em que uma das personagens centrais é a Senhora Morte num momento em que Bukowski se debatia com a última fase de um cancro.
Mas se a forma perdura, o tema parece escapar às suas forma de Realismo Canalha. Ele não escreve sobre a vida de uma personagem vinda do lado menos polido da realidade como a conhecemos.
Escreve sobre um detective privado a braços com os mais absurdos casos, sempre com a investigação metida em becos sem saída. Em seu socorro vem sempre o acaso e as mais extraordinárias criaturas: um extra-terrestre, por exemplo.
Aqui tudo é perfeitamente inacreditável e, no entanto, a atitude de Nick Belane (que nome fantástico para um detective) é a de calma aceitação.
Aqui temos de voltar a ler a biografia do autor na sua ficção. A leucemia e a morte são mais duas extravagantes irrealidades que ele aprendeu a aceitar, um homem apaziguado com a inevitável estupidez do destino que é igual para todos os seres humanos.
Na sua vertente de homenagem paródica a Chandler e Hammett, também ganha mais força se lido pelo prisma da própria vida do autor.
Pois quem não lhe tenha um carinho perverso não conseguirá aceitar facilmente as extravagâncias literárias de Pulp, mesmo sabendo das restantes origens que o inspiram - não esquecer que o livro está Dedicado à má escrita.
Quem não esteja habituado a tal mas aceite o desconforto dessa suspensão da descrença será recompensado com ironia e sarcasmo - ambos de génio - sempre em crescendo até ao delírio.
Já perto do final do livro, o diálogo com a operadora de linhas eróticas é daqueles que impossibilita que se contenha a gargalhada (negra, claro). Aliás, o recurso sistemático ao diálogo corrido por várias páginas é uma das ferramentas que melhor permite a Bukowski debitar os seus humores
Pena apenas que na tradução se percam alguns deliciosos momentos, como o trocadilho com detective e pila (dick).
Pelo contrário, na tradução não se perde a noção de um certo sentimentalismo - derrotado e insatisfeito, mas ainda assim um sentimentalismo (pouco habitual no autor) - pela humanidade, como que a perdoar-lhe as causas da misantropia de que sofria.
São as tiradas de alerta de um filósofo que só o poderia ser no limite do fim da vida, que avisa para os perigos próprios das nossas acções e das nossas considerações. Os seus avisos são demasiado certeiros para não pesarem sobre os leitores, apesar de contaminados com a devida ironia.
Belane alerta-nos para que a maioria dos homens não vive bem, vai-se desgastando ou que um bom bairro é aquele em que não temos dinheiro para viver. Espera-se que um dia essa sabedoria exerça o seu efeito.
O livro carrega ali uma beleza poética que resiste a ser lamechas, apesar de tudo o que acontecia a Bukowski. E se este alter-ego de Bukowski acaba o livro de bem com a Senhora Morte, Bukowski recusou-se a pontuar a sua obra com um livro mais afável.
Esta é a despedida afectuosa com os seus leitores - aqueles que aprenderam a encontrá-la e retribuí-la por entre a dureza - mas com o mesmo espírito do "vão-se lixar" que os agarrou a todas as páginas que vieram antes.
Quando naqueles dois capítulos brevíssimos - capítulos 5 e 10, de um parágrafo apenas - nos descreve a inutilidade de dias em que o que há para contar nada importa ou que nem sequer já tem algo para contar, estamos muito perto da ternura por quem confessa o desalento com o desperdício do tempo que já não tem.
Haveria mais a dizer, sobretudo sobre os simbolismos e referências várias que o romance guarda nos seus detalhes. Como estes se ligam com as influências, a vida e a aproximação da morte para Bukowski.
Mas isso deve ficar de fora deste texto para que algum leitor que (ténue esperança minha) se forme ao passar os olhos por este blogue.
Na verdade, não sei como voltarei a ler livros de um Bukowski mais enérgico e feroz depois de o ter encontrado tão mais tocante.
O grande absurdo do seu livro é o realismo a que nos obriga a viver depois dele. No final, Bukowski não nos poupou ao seu estilo de vida e de escrita.
Diria que Pulp pertencerá ao género do Irrealismo Canalha, cheio da inventividade que nos faz julgar estar perante um agradável escapismo antes de nos vermos confrontados com a rispidez literária sobre os aspectos da vida que todos partilhamos.


Pulp (Charles Bukowski)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Setembro de 2012
240 páginas

1 comentário:

  1. Curioso a designação que lhe dás ao estilo de Bukowski e de Gutierrez. De Bukowski li "mulheres", de Gutierrez li tudo o que está publicado em Portugal.
    Na minha opinião têm, de facto, alguma semelhança apenas na forma como pintam o seu mundo e na forma canalha e cinica como se relacionam com os outros, demonstrando a verdadeira forma do ser humano (se é se me faço entender).
    Em todo o caso enquanto Gutierrez vai narrando o dificil e por vezes irreal quotidiano de uma Cuba parada no tempo e em que a miséria abrangia praticamente todo o povo, Bukowski cria mundos mais irreais em que a bebida está sempre presente e onde demonstra, na minha opinião, um completo desprezo pelo ser humano, pois nas suas sujas relaçoes com as mulheres que ele o expressa.

    ResponderEliminar