Olho para trás, para Agosto de 2009, e espanto-me de ter escrito tão pouco acerca de um livro que constituiu uma das mais surpreendentes descobertas de um autor que fazia em algum tempo.
No entanto, por pior que a transmitisse, já lá estava a ideia principal que agora tenho de voltar a destacar, a da enorme coragem de Rosa Montero ao escrever na herança directa de grandes nomes.
Coragem porque esta acção de assumir frontalmente a linhagem de um outro autor não costuma acontecer porque permanecem as ideias de que o resultado será sempre um falhanço - em comparação com... - e porque atestará das intenções arrogantes do autor - querendo fazer-se notar como...
Em ambos os casos o medo surge por antecipação nos autores e vamos vendo obras que deveriam transformar a literatura - como a banda desenhada, o cinema, etc... - como que esquecidas a cada nova criação, embora influentes a título pessoal.
Rosa Montero, pelo contrário, cria novas obras dentro de uma tradição excepcional. E se não é possível arriscar mais do que com a obra de Cervantes - ou não fosse o destacadíssimo primeiro lugar na lista dos cem melhores romances (tal como votados por escritores de todo o mundo) em que não era atribuída uma classificação - atirar-se ao universo de Philip K. Dick e a sua leitura visual (mas não só) feita por Ridley Scott não andará longe do mesmo risco dentro do género da Ficção Científica.
Quem não reconhecer o título do livro como o título de uma icónica cena de Blade Runner, reconhecerá logo nas primeiras páginas os replicantes.
A autora não se limita a integrar ou adaptar um universo alheio à sua sensibilidade. Neste caso, ainda mais do que com História do Rei Transparente, Rosa Montero transforma a herança literária para que fale de temas que lhe são essenciais. Com aquele livro era a condição feminina no mundo (tanto antigo como presente). Com este é a sua Espanha e a (eventualmente) sua Europa, para onde a acção passou agora depois da Los Angeles de 2019 (sobretudo esta metrópole inventada que se reflecte nas descrições de Madrid).
Dois espaços geográficos e políticos onde as forças políticas radicais conseguem cada vez mais usar as circunstâncias para se exibirem e ganharem apoiantes, onde as maquinações secretas se multiplicam, onde os verdadeiros decisores permanecem na sombra.
Mas este texto não se limita a lançar um aviso sobre o nosso presente. Na sua distância temporal aproveita para fazer a crítica de um futuro que está a formar-se para breve.
Um futuro onde a preservação da memória se arrisca a ser corrompida de forma muito mais evidente. Se antes os vencedores escreviam a História tal como lhes interessava, agora qualquer um escreve a História como lhe interessa. E tal versão anónima e incorrecta persiste porque cada vez menos exigem verificação.
Os capítulos em formato wikipédico, mais do que maneira simples de criar uma mitologia para o universo, servem para evidenciar as questões de edição que os textos sofrem quando estão abertos à edição online pouco criteriosa.
Não se trata apenas de falar das polémicas com erros óbvios que levaram a The Free Encyclopedia a criar um registo de alterações a cada artigo (embora tal continue a ser feito nos bastidores e, por isso, invisível a muitos).
Trata-se, sobretudo, de reflectir em como é possível atacar - uma ideologia, uma pessoa, uma nação - por alteração intencional da realidade conhecida. E de como isso será mais perigoso e difícil de contrariar quando for feito sobre o Passado e não sobre o Presente.
A escassez de elementos históricos preservados em formato menos susceptível a manipulações pode levar a que, no futuro, se denigra o registo histórico para atacar a realidade naquele momento.
Rosa Montero está, dessa forma, a defender o seu próprio meio, o texto impresso, contra o monopólio do texto imaterial.
Se estes são os factores singulares de Rosa Montero enquanto autora de Ficção Científica, essencial também é falar dos temas que a unem às bases deste seu livro. Se a sua filiação ao trabalho de Philip K. Dick fosse apenas a existência de replicantes então ela seria demasiado ténue (até porque eles só foram denominados assim pelo filme).
A abordagem às questões sobre o que define "Ser Humano" repercutem-se no trabalho de Montero, em certos momentos amplificadas.
Não se trata já de discernir entre memórias verdadeiras ou implantadas, pois todos os replicantes sabem que as suas memórias são falsas - e nem assim conseguem desprender-se delas, ponto essencial para o desenvolvimento da história do livro.
Trata-se daquele traço tão destacado do animal humano: ser o único consciente da sua morte.
Neste futuro, essa consciência afecta antes os replicantes, limitados a uma década de vida antes de uma morte agonizantes. Os humanos retocam-se e prolongam as suas vidas, tentando levar o limite da imortalidade a mesma vaidade do início do século XXI.
A questão em aberto é agora mais abstracta do que prática: sempre que se descobre um traço que distinga o ser humano, se ele o conseguir superar - ou replicar ou anular - , há que repensar a definição de ser humano ou há que inventar nova designação para ele?
Neste aspecto é uma continuação do universo especulativo dos andróides - que não começa nem acaba com Philip K. Dick - de bastante interesse.
Claro que o livro tem elementos de Ficção Científica menos satisfatórios, sobretudo por serem detalhes referidos mas que não são depois tratados mais amplamente. A sua falta de influência no universo ficcional deveria inibir o seu surgimento.
São pecados insignificantes contra a qualidade do livro, sobretudo por funcionar muito bem no estilo noir que já servia a melhor das versões de Blade Runner e que prova ser um meio equilibrado para agregar as reflexões mais amplas com a necessidade criativa de um mundo (quase) de raíz.
No fundamental, trata-se de um livro de elevada qualidade, que só o foi porque a sua autora se apoiou nos ombros de outros gigantes (Newton não se importará com a adaptação da sua frase). Espera-se que outros se venham a apoiar nos ombros dela - e de Philip K. Dick por acréscimo - para escreverem outras obras de qualidade no futuro... não muito distante!
Lágrimas na Chuva (Rosa Montero)
Porto Editora
1ª edição - Janeiro de 2012
360 páginas
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