terça-feira, 31 de maio de 2011

Com respeito às edições

Quando li O Beco dos Milagres optei pela versão da Contraponto, mas à conta de uma linhagem de leitores, tinha cá em casa igualmente uma versão editada em 1990 pela Caminho.
Só depois de terminada a leitura fiz o exercício de comparar as duas traduções.
A nova é mais eficaz e funcional, sem perder a sua beleza. A anterior era feita num português mais "dançante", mais sedutor na língua, mas aparentemente menos fiel ao original (pelo menos assim me pareceu acrescentando a esta comparação a de O Cairo Novo como referência externa).
Não sendo especialista em traduções e, muito menos, capaz de ler em árabe, talvez tenha acabado de escrever um disparate. Ou talvez tenha, simplesmente, dado uma opinião que outro leitor desmentirá sem que tal impeça que ambos apreciemos os livros que lemos.
Se invoco este tema não é tanto para afirmar que há traduções melhores ou piores, mas para olhar para o grau de respeito das traduções (e edições).
Quando comparei os dois livros foi também para saber qual guardar. Quando se gerem demasiados livros para o espaço disponível, é (quase sempre) impossível manter títulos em duplicado.
Enquanto comparava as traduções sentia-me inclinado a guardar o livro da Caminho, também por ser uma edição mais antiga. Mas foi ao comparar o final de cada livro que a minha decisão ficou tomada e no sentido inverso.
A edição da Contraponto termina claramente com um Sim, tudo tem um fim... Em inglês diz-se end e soletra-se e-n-d... enquanto a edição da Caminho termina em Depois estremeceu, soltou um suspiro profundo, continuando.
A diferença é a de um parágrafo inteiro que a Caminho deixou de fora. A razão não a sei, pois o livro tinha ainda mais páginas disponíveis de seguida, mas arrisco-a.
Nas três páginas que se seguem ao continuando a Caminho apresenta os muitos títulos da sua colecção "Uma Terra Sem Amos", ou seja, em nome da publicidade a Caminho parece ter sacrificado a coerência do texto.
Posso estar enganado, até o espero (se alguém tiver tal edição em casa e me desmentir através dos Comentários, agradecia), mas é isto que parece. Mas não é nisto que se esgota o que tenho a escrever.


Dentro do mesmo tema, calhou há pouco tempo em conversa com o editor da Alfabeto (uma fonte de conhecimento de todas as etapas de produção de um livro e um interlocutor de enorme simpatia), as traduções dos escritores russos.
Traduções muito mal tratadas ao longo de muitos anos, antes dos tradutores nacionais da língua russa - Nina e Filipe Guerra, António Pescada, etc... - se tornarem nomes reconhecidos como marca de qualidade.
Parágrafos ou páginas totalmente desaparecidos - fosse porque dariam muito trabalho ao tradutor ou porque o editor queria poupar papel - de traduções que tinham origem já em outra traduções do texto (para inglês ou francês, normalmente).
Temos, pois, a sorte de podermos ler traduções integrais dos clássicos russos, muitas vezes com a possibilidade de optar por qual a versão que mais nos agrada.
Algo que as edições destinadas aos leitores que vieram antes de nós não tinham em consideração, dando o que queriam dar ao leitor e forçando-o a aceitar isso sem poder fazer exigências elucidadas.
Suponho que cada geração tem os textos "possíveis" à sua disposição. E que se a cada geração, mesmo com as más versões usadas, os textos e as histórias parecem magníficas, é porque o trabalho original é uma obra maior cujos traços de brilhantismo não podem ser apagados.
Numa conversa que tive a propósito da comparação do Em Busca do Tempo Perdido da Livros do Brasil e da Relógio d'Água, foi-me dito claramente que "Se é legível e a tradução não me interrompe a leitura, está bom. Não é preciso andar sempre a substituir uma edição pelas suas novas." (A citação vale mais pela ideia do que pela correcção das palavras.)
De facto, não é possível andar a substituir todos os livros à medida que novas traduções do texto surgem, mas ainda há algumas em que esse acto parece indispensável. Ainda que sejam mais actuais, mais precisas, mais fidedignas, até mesmo as velhas traduções podem vencer pelo seu valor afectivo anexo à primeira leitura que se fez de um texto.
Mesmo assim devemos ser capazes de apreciar como estamos bem servidos, neste século XXI, de tradutores e editores que ainda servem mais o leitor do que a contabilidade.

Sem comentários:

Enviar um comentário