quinta-feira, 15 de abril de 2010

Brinquedos diferentes

Brinca comigo! é um interessante conjunto de quatro contos que variam entre o Fantástico e a Ficção Científica e que fazem um retrato muito interessante das variedade, imaginação e talento que existe nestas áreas em Portugal.
Vou falar de cada um individualmente, pois merecem, capazes de sugerir muitas possibilidades e leituras em poucas páginas.

Brinca comigo! (João Barreiros) é um conto de FC onde os brinquedos ganharam uma espécie de consciência. Num mundo dominado e destruído por empresas, os brinquedos formam um grupo capaz de servir um objectivo comum sem se tornar evidente para os satélites que ainda vigiam o planeta com sede de destruição.
A facilidade com que Barreiros estabelece o cenário pós-apocalíptico sem se desviar um milímetro do foco que tem na Horda e nos seus mecanismos internos é notável, como é notável a percepção que se tem de como a consciência da Horda é falhada, servindo-se de um propósito quase impossível para mantê-la unida, procurando um último sentido para si mesma, mesmo que esse seja um sentido que terminará em auto-destruição.
Um retrato do destino vazio da civilização, não só capaz de se destruir a si mesma, mas também de se deixar seguir por qualquer ideologia implausível e vazia.

Um erro do Sol (David Soares) aborda o fantástico mais extraordinário fazendo-nos chegar lá do ponto de partida mais quotidiano, a disputa obsessiva da indústria dos brinquedos pela novidade que lhes trará o domínio comercial.
David Soares evidencia que o mundo corporativo vive de uma auto-fagia violenta por levar o seu representante à realidade mais primal de tal ideia.
O mundo corporativo leva-nos a todos a admirar e vibrar com o lixo - forma fabril de excreções, de certa forma - que produz. Horrorizarmo-nos com uma civilização que desfruta de tais prazeres sem censura moral ou física é uma injustiça com o nosso próprio meio de vida e, por isso mesmo, essencial a uma mudança.

A Boneca (João Ventura) é o menos interessantes dos contos, colocando uma boneca de Vodu a servir o seu propósito para lá do momento em que foi preparada.
A ideia não é particularmente distinta, esperando-se mais da sugestão de como uma boneca Vodu se pode esconder no seio da inocência dos brinquedos.
O propósito destrutivo mais feroz pode esconder-se no seio da maior inocência, mas o conto não segue verdadeiramente por essa via, como nem arrisca as sugestões - para muitos ainda chocantes, suponho - sobre as crianças que fazia O Laço Branco, um exemplo recente de um outro meio.

Não é o que ignoras o motivo da tua queda mas o que pensas saber (Luís Filipe Silva) é um outro conto de FC que traça uma genealogia com várias vertentes dentro do género e que não se entrega a facilitismos.
Pode ver-se nele tanto a capacidade como a inconsciência do ser humano de aproveitar qualquer material ou situação em seu benefício sem nunca reflectir nela por completo.
Pode ver-se nele como a consciência é a única forma de salvação que temos, ainda que tantas vezes façamos pouco uso dela.
Pode ver-se nele uma simples história que não pretende mais do que difundir o mistério de si mesma, de se permitir levantar questões de forma a permanecer com o leitor longamente.
Um conto versátil, intrigante e perfeitamente original.

Como espero que fique bem patente no que escrevi é que a relevância deste livro está na forma inteligente e inesperada como os autores abordam o tema do Brinquedo sem qualquer típica formatação, como sejam a da rememoriação dos tempos da infância.
A literatura é um tipo diferente de brinquedo, tanto para autores como para leitores, portanto não há porque qualquer um dos dois se contentar com brinquedos sem graça.


















Brinca Comigo! (David Soares, João Barreiros, João Ventura e Luís Filipe Silva)
Escrit’orio Editora
1ª edição - 2009
116 páginas

3 comentários:

  1. Uau, que legal!!!
    Fiquei com vontade de ler!

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  2. Carlos , enquanto editor da obra, queria, antes de mais, agradecer a crítica e aproveitar para esclarecer que o nome da editora é apenas: "ESCRIT'ORIO Editora".

    Miguel Neto

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  3. Uma outra visão sobra a antologia:

    http://letras-sem-fundo.blogspot.com/2010/04/brinquedos-diferentes.html

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