sexta-feira, 30 de abril de 2010

O homem pelo Homem

Há algo em A Ofensa que me remete para O Grande Ditador. As personagens centrais de ambas as obras perderam algo durante a Guerra e retornam ao mundo incautos, ignorantes da realidade que permanece.
Mas se em O Grande Ditador o barbeiro perdia a memória, aqui o que se perde são os sentidos.
O corpo, mais do que um invólucro, é o mecanismo pelo qual uma consciência apreende o mundo.
É esse mecanismo que se perde quando aquilo que ele tem de reproduzir num corpo só é a mais violenta dimensão humana.
O protagonista está decidido a ser único e independente, a ser ele próprio. Os que o rodeiam deixam-se diluir numa consciência colectiva - que se torna numa indiferença colectiva. Daí que eles nada sintam quando ele tudo sente. Daí que eles permaneçam incólumes quando ele abandona o mundo e se isola em si próprio.
Quando o Horror se produz, o alfaiate foge dele como pode. Sem nada sentir, a brutalidade deixa de o afectar. A memória sensória apaga-se e com ela a restante memória.
No mesmo momento perde também a capacidade de apreciar a beleza que o mundo guarda, mas como pode ele acreditar que há verdadeira beleza num mundo que permite tal atrocidade...
Se mesmo esta defesa insensível não chega, o homem só pode recorrer a um outro estratagema. A consciência está para lá dos limites do palpável e, por isso, a determinação de a apagar vence no preciso momento em que tudo o resto parece querer conspurcá-la.
Como o barbeiro, este alfaiate não admite um mundo como o que lhe constroem à força e pela força.
Um homem, um simples alfaite, sacrifica-se por completo, perde o corpo que o liga ao mundo, quando o Homem ofende o Homem.


















A Ofensa (Ricardo Menéndez Salmón)
Porto Editora
1ª edição - Março de 2009
128 páginas

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