domingo, 22 de março de 2009

Deixai-o arder!

Quando o incêndio começa, consumindo os armazéns que guardam os mantimentos comunitários, uns correm a roubar o que podem e outros correm a salvar o vodka, uns correm atrás dos outros e outros correm sem saberem porquê.
Só Ivan Petrovitch, ele que se preparava para abandonar esta terra, se entrega arduamente à tarefa de salvar os cereais que lhes permitirão sobreviver.
E enquanto o faz não consegue deixar de revisitar todos aqueles acontecimentos que anunciavam já este incêndio, não dos armazéns mas do que restava da vontade dos homens.
O tempo que o incêndio leva a consumir todo o armazem é também o tempo que leva Ivan Petrovitch a rever os motivos que o levaram, homem justo e determinado, a decidir abandonar a terra que ajudara a erguer-se.
Os trabalhadores sem apego senão a si mesmos que o prejudicaram apenas porque ele teve coragem de se erguer e falar.
A decadência da terra que ele ajudou a criar e a quem ninguém dá mais importância.
Ele que, mais do que desesperado, é acossado por tudo isto. Por isso se prepara para fugir.
Petrovitch está cansado deles e cansado de ter de se diminuir assim.

Não lhes bastava viver no abismo da Sibéria, tiveram de cavar também o abismo humano e isso rasga o coração de Petrovitch.
O incêndio vem apenas confirmar a queda, o lançamento completo no abismo da (pouca) humanidade que ainda ali se poderia encontrar.
Mas vem também arrancar de Ivan Petrovitch uma nova força, um novo apego ao que o cansava tão profundamente até aí.
Ivan Petrovitch é, no fundo, o inverso de Ló, não tendo hipótese senão de ficar como redentor na Sodoma que é, apesar de tudo, a sua terra.
E o incêndio não é apenas a destruição, mesmo que não chegue a ser uma purificação.
O incêndio é o arrasar do edifício cruel daquela condição humana
Como no final diz Ivan Petrovitch, "Havemos de viver", pois afinal há de novo algo a fazer por aquela terra e, sobretudo, uma hipótese de não ter de se render e fugir acossado!

O Incêndio é um relato de desumanização e elevação bem escrito e que se enterra em nós quase violentamente.
O Le Monde escreveu a propósito dele que era "quase dostoievskiano".
Faltava a Valentin Rasputin um "negro" que adensasse as suas descrições até aos limites do esmagador para superar esse "quase".
Sim, O Incêndio é assim tão bom, por isso, leitor, deixai-o arder!



















O Incêndio (Valentin Rasputin)
Difusão Cultural
1ª Edição - Janeiro de 1991
128 páginas

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