terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Criação de um mundo onde até cabe a nossa imaginação

Revendo a crítica a O Caso Jane Eyre não sinto que tenha feito justiça ao trabalho de Jasper Fforde. Isso ou não senti desde logo a extensão da criatividade do autor.
O mundo que ele criou é tão extravagante que será sempre coerente, porque tudo o que lhe ocorre cabe nos interstícios do mistério dos vários departamentos das Operações Especiais cuja função está ainda por revelar ou das combinações retro-futurísticas do ano de 1985 do livro em que é possível viajar tanto através do núcleo do planeta como através do Tempo.
As ideias criadas pelo autor dariam azo a, de forma isolada, sustentarem outros livros, de ficção científica, policial, sátira revisionista ou banda desenhada de super-heróis.
E criar é um verbo merecido pois é raro haver algumas dessa ideias que se sintam serem repescadas de outros meios, mesmo para eles remetendo.
Fforde, em vez de tentar fazer render essas ideias e sustentar uma carreira multi-facetada decidiu-se a criar um inacabável multiverso onde todos os seus disparates - pedaços de humor descabido e surrealista - podem ir ganhando espaço e diversificando um texto que, desde logo, tinha uma premissa extraordinária, sobretudo para aficcionados leitores.
Esta detective literária que vai conseguindo entrar nos livros, desta vez, descobre que faz, também, parte da Jurisficção, um departamento meta-literário cujos mistérios de maior monta ainda estão por revelar.
Este conjunto de agentes que são também personagens de ficção são uma das partes substanciais do livro, mas não a única e até demoram bastante tempo a entrar em cena.
São, no entanto, uma criação que poderia dar origem a uma outra inesgotável série de livros dedicados às acções secretas passadas no interior dos milhões de livros publicados (ou por publicar) ao longo da História.
Não parece que Fforde o vá fazer pois os seus propósitos são os de criar literatura agradável ao mesmo tempo que se relaciona com um público mais experiente - sem perder  descaramento de tentar listar os dez clássicos mais chatos de sempre em que pode ofender algumas sensibilidades canónicas.
Por mais ideias que Fforde tenha, por mais géneros que misture, não deixe de ser um dedicado escritor que se foca nos jogos de palavras, nas coincidências linguísticas, nos jogos com as estruturas do livro e nas referências literárias.
Um dos melhores episódios do livro é aquele em que Quinta-Feira Seguinte tem de enfrentar o Tribunal d'O Processo conseguindo dar a volta ao juíz até que o advogado de acusação é lançado para os calabouços. Tão divertido de seguir quanto a comunicação das personagens da Jurisficção através das notas de rodapé, uma sedutora novidade que adiciona funções a um utensílio tão comum e pouco pensado da lituratura e que aqui transforma a dinâmica da própria leitura.
Se há uma certa erudição neste género de invenções ficcionais, não deixa o livro de proporcionar uma leitura veloz e animada para outros públicos.
Para que sirva de exemplo deixo aquela que é para mim a mais brilhante das ideias deste livros, de uma gritante simplicidade e de uma gritante genialidade. Trata-se do entroposcópio, nada mais que um frasco de compota meio por meio de arroz e lentilhas que, quando as coincidências surgem em quantidades demasiado grandes, permite a Quinta-Feira avaliar o risco de vida que corre. Basta agitá-lo e se o arroz e as lentilhas se organizarem (em vez de se misturarem) então o caso é sério! Simples e por isso tão curioso. Absurdo e por isso tão divertido.
O simples vem de mão dada com o extraordinário e ainda que Fforde não arrisque, como Douglas Adams, dar-nos a resposta para a Vida, o Universo e Tudo Mais, dá mesmo assim uma nova visão da criação da vida na Terra com um delicioso sabor a morango. Mais exactamente da criação da vida naquela Terra em particular, uma de muitas para as quais a protagonista ainda poderá vir a saltar com inoportunas consequências que são desvendadas ligeiramente e que podemos dedicar-nos a imaginar sem que nunca tenham de ser exploradas a fundo.
Em parte somos todos criadores a par com Jasper Fforde que nos lega um universo onde as dúvidas sao tão produtivas quanto as revelações.

Não posso terminar sem dar nota da tradução. Uma tradução conscienciosa e eficaz mas à qual falta a noção do uso corrente e corriqueiro da língua inglesa.
Apesar de todo o humor do livro, é quase certo que no original este será substancialmente mais eficaz e mais diversificado.
Alguns exemplos gritantes dessa falha surgem ao longo do livro, tornado as expressões impraticáveis ou deixando passar jogos fonéticos, mesmo que intraduzíveis, sem qualquer referência de rodapé.
Do primeiro caso destaco na página 254 a frase o que me dava a sensação de estar a ler desenhos animados às escondidas durante as aulas na qual "cartoons" deveria ter dado lugar a tiras (dominicais).
Do segundo caso deixo dois exemplos por ser o que mais afecta a riqueza do texto. 
Quando é que ele vai fazer-te perguntas sobre Jack Schitt? (página 104) é uma tirada de duplo sentido em que há um desprezo para com a personagem que fica perdido sem o entendimento que Jack Schitt é foneticamente idêntico a "jack shit", ou seja, "merda nenhuma".
Mais tarde (página 274) o avaliador da detective avalia-a com um F. Não por acaso o seu nome é Flanker, a uma letra apenas de "flunker": aquele que reprova.
Possivelmente o público que, por si só, não consegue penetrar nos resquícios de inglês do texto e compreender este humor nada tem a perder. Mas a tradução só ficava a ganhar com mais "esperteza de rua".
Em sentido inverso não posso deixar de destacar a sedutora capa, desenhada por Ricardo Cabral, de quem já falei aqui com grande admiração.


Perdida num Bom Livro (Jasper Fforde)
Guerra & Paz
1ª edição - Janeiro de 2011
340 páginas

domingo, 29 de janeiro de 2012

Joop Iscariotes (e a chata da Anne)

Nunca tive paciência para Anne Frank, sobretudo obrigado a ler o seu diário como exemplo desse género de escrita durante os anos de ensino obrigatório.
O único texto em que gosto de a ver como protagonista é esse certeiro pedaço de humor negro que diz o seguinte:

Anne Frank
Campeã Mundial do Jogo das Escondidas
1942 - 1944

Se comecei a ler este livro foi, precisamente, porque me referiram que ela não saía bem tratada dele.
É verdade que o livro não lhe é simpático, mas mesmo assim termina com um nobre acto em seu nome, uma redenção do verdadeiro protagonista deste relato num exagerado acto final que envolve um sacrifício contra um mártir terrorista com uma lógica ainda mais retorcida que o habitual.
Sem a Parte III, o livro teria acabado melhor, um pouco em aberto mas com a integridade do seu protagonista intacta.
Se tivesse terminado no momento em que Joop percebe que há culpa suficiente para distribuir por vários intervenientes e que ele não precisa de continuar a carregar a solo a culpa da captura de Anne Frank.
Afinal de contas, não fosse a sua traição e Anne Frank não teria cumprido o seu sonho de ser uma escritora publicada e reconhecida.
E não fosse isso, a Holanda não seria um país considerado como um dos poucos que tiveram um comportamento digno para com os judeus durante a ocupação nazi. Apesar de uns dez mil judeus escondidos durante esse período terem sido traídos pelos holandeses em troca de pequenas perspectivas de uma vida menos difícil.
Joop foi o Judas do comportamento holandês durante a primeira metade da década de 1940. Durante décadas odiado anonimamente por todos os admiradores de Anne Frank e até por si próprio, não fosse ele a colocar em movimento os acontecimentos que levariam à publicação do livro da jovem judia e a rapariga
Afinal ela escrevia no seu diário sobre como estar escondida era passar umas férias diferentes, queixava-se de ter de comer várias refeições de morango por ser o único alimento que o seu pai conseguia e preocupava-se excessivamente com o mau corte de cabelo que tinha feito e que Klaus poderia ver.
Ao mesmo tempo o pobre jovem Joop dedicava-se a todo o tipo de trabalhos durante o dia inteiro, fazia contrabando para conseguir comprar um ovo que adiasse a morte do pai doente e a sua preocupação passava consigo mesmo vinha apenas do sentimento de inutilidade que o assolava sempre que não conseguia um ovo para o seu pai.
Quem merece ser relembrado pelo seu sofrimento e esforço durante período tão conturbado? Para mim é óbvio, até porque os feitos de Joop revelam o quão difícil era a vida para todos os povos ocupados e esquecidos pela crueldade usada contra os judeus.
Se Joop não tivesse traído Anne, esta nunca teria sido o ícone que se tornou e eu não teria tido de ler o raio do diário que ela escreveu. Um diário que só tem interesse porque ela morreu, enquanto outros - de mais interesse, de mais valor, de mais talento... - morreram sem deixarem uma linha escrita.
Ainda para mais quando as sequências de maior personalidade e polémica do diário - aquelas em que revela as suas tendências lésbicas e o seu desabrochar sexual - acabariam de fora da versão com que nos ocupavam na escola, censurada na maioria das edições pelo pai de Anne que a queria como uma mártir impoluta. Uma personagem chata e fútil, portanto!
Claro que, nesse caso, também não teria lido este outro relato, com bastante mais valor literário e interesse enquanto saga de sofrimento e entretenimento na Holanda da II Guerra Mundial.
Fica ela por ela, embora me pareça que vale a pena suportar a omnipresença do diário de Anne Frank para ouvir Ricky Gervais dizer sobre Anne Frank que ela foi preguiçosa. Afinal tinha tido tempo para escrever um romance mas apenas deixou um livro que acaba um pouco abruptamente. E nem sequer escreveu uma sequela!


Uma Tulipa para Anne Frank (Richard Lourie)
Quetzal Editores
Sem indicação da edição - Setembro de 2005
228 páginas

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A alma de um romance português

Um homem preso na Tunísia e uma mulher desaparecida algures em África, consequências individuais de um caso de uma noite que liga destinos a três décadas de distância.
Que liga filhos como ligou os pais e que liga os últimos fogachos de contra-revolução portuguesa de 1975 ao jogo da diplomacia internacional corrente.
Mas há mais temas dentro deste livro que parece ter um título anunciador dos seus méritos. A história de amor entre Pedro e Inês ou a concepção corrente do papel que cada género deve desempenhar são temas que se ligam para desafiarem as convenções do leitor.
Olhamos para as personagens e reconhecemos deles algo mais do que os nomes como sinónimos dessa memória Histórica que, de Luís Vaz de Camões a Agustina Bessa-Luís, inspira ainda a Literatura.
Ele, Pedro, tem de inventar um deus para que possa sobreviver acreditando em algo que ocupe a solidão e compense o paladar e o olfacto que lhe levam a "merda" que come e a merda que produz se acumula.
Ela, Constança, mulher de seduções, é fugitiva mas poderá ter-se tornado vítima. O seu destino é feito de rumores mas ainda assim é suficiente para condenar Pedro ao sofrimento da prisão injustificada.
Falta ainda contabilizar Inês, a namorada de Pedro que está no Canadá e que quando deveria rejeitá-lo à conta da traição redescobre o seu interesse nele porque ele se transformou de um rapaz simpático num homem sedutor (mesmo que de outra mulher). Embora a paixão só dure o tempo da sua estadia no país de todos os imprevistos onde ela recusara acompanhar Pedro.
Embora os papéis não se definam da mesma maneira, o resultado é idêntico ao das relações que ainda definem hoje a maior história de amor do nosso Portugal.
Inês não morre mas fica perdida para Pedro devido às suas opções. Constança, como a rainha, é uma mulher desgostosa mas que resolutamente resiste sozinha. E ele, com nome de rei, dá sinal da sua nobreza restituindo amizade à mulher que o levou à prisão, mesmo sem recompensa que sobre ele recaia.
Tudo devido a uma paixão momentânea que carrega o peso de três décadas mas que fala da tragédia de sete séculos.
Uma tragédia que é nossa, dos portugueses. Talvez por aí se aceite que a sinopse diga que este é o romance da alma portuguesa, inquieta e insegura mas não apenas dos trinta anos que passaram desde o 25 de Abril.
A alma portuguesa mantém-se inquieta e insegura, apesar de todos os feitos e todas as paixões, desde que o país ainda não o era. Por tal continua a viver intensamente a mágoa melancólica do Fado que alimenta a antecipação da tragédia de todas as gerações.
A mágoa e uma certa obsessão com a morte são o que resta aos personagens no final do livro.
Só não era necessário que o final, onde os encantos de Casablanca se juntam a todas as outras referências que o escritor coloca no tabuleiro de jogo, fosse tão longo e reflexivo.
A resolução do livro - que até passaria bem sem ela - persegue em demasia a poesia reflexiva que dá às personagens uma faceta extra e um destino apenas semi-infeliz. Até mesmo a Constança, uma personagem central que passa o romance quase todo desaparecida sem que deixe, por isso, de se fazer personagem.
Tal não apaga que Vítor Serpa revela na escrita de um primeiro romance um domínio das palavras e uma profundidade das descrições. Características que podem, claro, ser apenas extensões do seu trabalho de jornalista.
Já a perspicácia que revela para a precisa orientação da narrativa mesmo quando troca de personagem a meio do relato de um mesmo acontecimento é sinal de alguém que merece, logo à primeira tentativa, o epíteto de romancista.


Tanta Gente em Mim (Vítor Serpa)
Publicações Dom Quixote
1ª edição - Abril de 2010
288 páginas

sábado, 21 de janeiro de 2012

A nobreza do que é comum

Coração de manteiga é um título limitado que não se compara à sugestão do original La contessa di ricotta. Um título que sugere uma contradição entre o título e a sua substância.
Mais do que o coração mole ou as mãos escorregadias designados comumente como "de manteiga", é a classe baixa do derivado de queijo que define o verdadeiro grau da nobreza que esta condessa - e as suas duas irmãs - mantem.
Assim vemos no título original a sugestão desta simultânea mistura e aversão entre a riqueza do título envergado e a falta de valor daquilo sobre que o este "reina".
Afinal de contas moram agora cada uma num dos apartamento em que transformaram o seu velho palacete, que tentam recuperar como sinal da sua velha glória mas cuja traseira cai aos pedaços à medida que a fachada é reparada.
O retrato da aristocracia italiana não mostra a decadência que afecta a construção à sua volta, mostra antes uma existência hermética destas mulheres que têm as suas convicções fixas num tempo que já não existe.
Colados às suas paredes, os estranhos seres que habitam outros estratos sociais reforçam a presença de um mundo moderno que não as satisfaz.
Entre as irmãs, uma vive um idílio sexual mas sonha com um filho, outra - a Condessa de Manteiga - tem um filho de um homem que se juntou com outra mulher mas sonha perpetuamente com o amor, e a última irrita-se com a liberdade dos outros para não tratarem do jardim que ela quer ver em todo o seu esplendor.
A alternativa que elas querem recuperar é muito mais grandiosa mas igualmente constrita. Uma vida elegante mas que se tornou há muito numa natureza morta.
Afinal, é agora a plebe trabalhadora - um mestre-de-obras que as serve, ainda para mais - que colecciona peças desirmanadas de fina loiça por admirar a sua beleza, enquanto as três irmãs lutam apenas por preservar intacto o conjunto de seis chávenas que são herança - e condenação - perpétua da vida que pertencia aos seus antepassados e que não as deixa olhar adiante.
Quando o mestre-de-obras parte uma das chávenas penitencia-se fortemente mas a Condessa de Manteiga vinga-se nele partindo-lhe toda a colecção de valiosas raridades sem consideração alguma pelo valor do material que devia admirar mais que os outros.
As vidas das três irmãs e dos vizinhos ou trabalhores à sua volta, mais do que se tocam, mesclam-se de formas inesperadas, melancólicas e desesperantes.
Dão um retrato aprazível de como a moderna Sardenha - e toda a Itália, supomos - se tornou numa comunidade repleta de estranheza mas unida pela mesmo riqueza dos elementos artísticos, culturais e históricos.
Uma comunidade que transformou os jardins palacianos em pátios de convívio e que juntou condessas a operários.


Coração de Manteiga (Milena Agus)
Alfaguara / Objectiva
1ª edição - Junho de 2011
120 páginas

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Do que há a temer na vida

Não gosto que me digam na capa de um livro que este é o livro a ler se tiver medo da morte. Não por mim ou pelas minhas próprias considerações sobre a morte, mas porque entre a presunção e o intuito comercial não me parece que os leitores venham a apreciar que os tentem convencer com uma frase que parece feita para um livro com outras intenções.
Vou ser directo desde já, a morte foi o tema que neste livro menos interesse gerou.
Não a morte como estado, mas a morte como presença permanente na mente – do homem e do escritor – e como pergunta a com a qual ele se confronta a todos os momentos numa consciência silenciosa.
A busca de uma filosofia sobre a morte num referencial literário que tem no seu centro Jules Renard e (mais ainda) Michel de Montaigne é interessante pelo imenso domínio de conexões que estão presentes na biblioteca que cada um escolhe para si. Isso é uma visão da genealogia literária do autor e uma revelação para o leitor apenas de autores e ocorrências que tem ainda de descobrir por si próprio.
Mais motivador, porque debatível mas carregado com a experiência de um homem perspicaz com mais de sessenta anos vividos, é a conjugação de ciência e filosofia com que ele encara a morte e as possibilidades que estão para lá dela.
Dessa conjugação chegou de um crente ateísmo ao seu ponderado agnosticismo que lhe permite escrever tantas páginas cultivando a dúvida que suspenda - ou, quanto muito, acalme - a expectativa da morte.
Uma combinação de saber e reflexão que não estão para lá daquela que deveria caber a todo o Homem, por mais comum que se ache, mas que também só poderia ser alcançada pela acumulação de experiência e conhecimento de um leitor determinado com tantas décadas vividas.
Um homem que sabe, portanto, temperar as resposta ininteligíveis da vida - e da morte - com a sabedoria e a tolice dos mestres que o precederam. Tanto as citações que alguns grandes escritores e compositores (as duas áreas de criação que mais tocam Julian Barnes, embora toda a Arte lhe fale de alguma forma) deixaram como os episódios que protagonizaram e se tornaram piadas dão a Barnes material de apoio a enfrentar os medos sobre os quais escreve.
Mas um homem que não está para lá do comum no que toca aos seus talentos de filósofo mas que a tal se arrisca sempre com um receio de fazer má figura. Tudo porque o seu irmão é, sim, um filósofo "a sério" e a provocação só vai até ao ponto em que o seu ego não saia magoado.
Aqui chegamos ao tema que Julian Barnes domina com maior talento e transmite com maior interesse: a família.
Há muitos episódios e relações com os quais ele executa um malabarismo narrativo admirável, sobretudo no que toca às dificuldades existentes na relação dos seus pais e dos seus pais com os filhos, mas nenhum envolve o leitor com tanta habilidade e com tanto prazer como a rivalidade do escritor com o irmão.
Uma rivalidade não assumida mas sentida na articulação dos diálogos encetados entre ambos e na exposição das situações comuns.
Talvez seja o resumo perfeito dessa rivalidade e o indício mais claro de como Julian Barnes pode usar a família como temática mais feroz do seu livro quando revela que a sua mãe menorizou os talentos dos seus filhos afirmando que um escrevia livros que ela podia ler mas não conseguiria compreender e o outro escrevia livros que ela podia compreender mas não podia ler.
Sente-se que as relações familiares - em grande parte autobiográficas, ficará o leitor a crer - constituem o tema cruelmente delicioso que Barnes tem para moldar através da sua caneta.
Por isso, não é pelo medo da morte que devemos ler o livro mas pela percepção do que há a temer na vida. Falo da família, claro, e de como esta guarda um conjunto de surpresas tão obscuras e tão desagradáveis como a morte que está por chegar.
Preocupemo-nos, pois, com aquele estado em que já nos encontramos, a vida.


Nada a Temer (Julian barnes)
Quetzal Editores
Sem indicação da edição - Maio de 2011
288 páginas

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Universos à espreita

Esta pequena colectânea tem quase um ano, mas o seu objectivo não sofre com o tempo que passa.
A divulgação dos autores da casa que a publica funcionará mais cedo ou mais tarde, se bem que na sua maioria estes são autores já largamente divulgados e, para a maioria dos compradores do Jornal de Letras, autores já lidos.
Admite-se, portanto, que a selecção é feita de contos breves que equilibrem a ausência de uma vertente comercial com um interesse literário que não seja negligenciável.
Nem por isso as expectativas devem diminuir. Pelo contrário, quem fez a selecção de contos conseguiu transmitir uma ideia de comunhão entre os autores.
Comunhão pelo que alcançam em poucas (às vezes pouquíssimas) páginas e que é a criação de eventos bem definidos com um universo a expandir-se para lá deles, ou seja, contos que nos deixam no ponto de reconhecimento da realidade que está logo por detrás deles sem que essa percepção dos bastidores impeça que o está no texto funcione por si só.
A fruição não é impedida pela eventual falta de vontade ou de imaginação de um leitor, mas talvez seja aumentada por essa perspectiva do que fica por dizer.

Vale a pena falar um pouco das tais descobertas que este livro permite, mais do que da mera readmiração de nomes já conhecidos.
Até porque são tantos os nomes a que dediquei pouca atenção como aqueles que conheço bem.
José Mário Silva suscitou interesse para ler mais com o seu Atendedor de Chamadas. Acima de tudo, pela brilhante forma de execução de que se lembrou dando a conhecer o universo em torno de uma personagem através das mensagens que recebe e ficam por responder. Ajuda também a aguçar o interesse que o seu conto nos deixe no limite da frustração à conta da falta de conhecimento sobre os motivos para a ausência de quem é, no fundo, o protagonista.
José Eduardo Agualusa, um autor que sempre me deixou desconfiado por algum motivo que a leitura das suas crónicas domingueiras na Pública não esclarece, traz um interessante toque de humanismo bilateral a um cenário a ferro e fogo que reconhecemos sem reconhecer a sério.
Fúria de Patrícia reis surpreendeu também por uma certa coragem com que retrata a mulher portuguesa e as lutas que tem de vencer em silêncio. A forma como aborda o conto torna a tensão - toda no interior da mente da mulher ao olhar o marido adormecido no sofá – palpável e o resultado surpreendente ou inevitável consoante o grau de pessimismo com que o olhemos mas, mesmo assim, um resultado que é uma vitória.
Os outros oito contos são igualmente bons mas como estamos no campo da descoberta, aqui deixo as que fiz e cada outro leitor poderá falar das suas.


Leya Contos (José Eduardo Agualusa, Manuel Alegre, Fernando Pinto do Amaral, Dulce Maria Cardoso, Mário de Carvalho, Mia Couto, Ondjaki, Inês Pedrosa, Patrícia Reis, Urbano Tavares Rodrigues, José Mário Silva)
Leya
Sem indicação da edição - Março de 2010
64 páginas

domingo, 15 de janeiro de 2012

Encontrar uma conexão

Numa compilação de contos, mesmo uma criada através de uma combinação de vontades de um júri e de público votante, há sempre uma tendência a procurar um elemento de união que a transforme num todo.
No caso deste contos, quanto a mim, a união está no humor que se debruça sobre a portugalidade (mesmo se de forma generalista por afunilamento da visão do mundo). Fosse mais evidente ou de uma subtileza que se guarda até depois do conto estar acabado, houve sempre uma nota de humor a acompanhar a leitura deste cinco textos.
O conjunto é muito interessante, mas começa mal com um conto que se parece demasiado com uma piada que arranca mal com um truque que uma breve investigação teria corrigido. A mudança do nome de uma pessoa não se pode estender aos seus apelidos, pelo que o grande motivo para o humor de Entrevistas de Emprego soa falso e fácil.
A sua admiração final ficará, certamente, a dever-se à acumulação de pequenos traços caricatos à figura de um português tentando vencer a máquina de empregabilidade nacional.
João, o Trovador, logo de seguida, é uma pequena saga imensa de moralismos inesperados que tocam tantas situações quantas as que o mundo tem para mostrar.
Situações que embaraçam aqueles que as criam contra o protagonista, porque todas as expectativas saem goradas pela medida de admiração que nos merece João.
Trata-se do melhor conto do conjunto, com uma admirável sensibilidade e um talento que evita que o tocante se torne lamechas.
André Domingues escreveu o mais cerebral dos cinco contos, não porque não haja uma crítica feroz e orgânica em Sine Die, mas porque partindo dos limites da arte moderna o autor vai criar uma trindade de elementos que nos deviam deixar perplexos perante o mundo moderno.
Tocam-se os tais limites radicais mas falhos de consciência da arte, os elementos anónimos das relações virtuais a que muitos se rendem depressa demais e o canibalismo social dos meios de comunicação modernos para quem até o humanismo profissional serve de motor a audiências.
Trata-se de um conto inteligente e cujos conceitos poderiam ser explorados mais a fundo, algo que me lembrou os exercícios de Lydie Salvayre.
BUS e Maria, uma Breve História são os dois contos entre os quais se encontram mais pontos de contacto. São ambos visões que mexem com o mais profundo da pequena alma do quotidiano.
O ponto em que se separam é a forma. O primeiro conto usa de forma intricada os limites do absurdo para colocar a nú o mais caricato da tão apregoada desenvoltura portuguesa. O segundo faz rebentar a resignação portuguesa - o poder silêncio - mas levando-a ao limite para estranho deleite do leitor.
São duas histórias sobre crimes de pasquim contadas de forma muito original que mereciam, sem dúvida, estar (como estão) publicadas em livro.


Novos Talentos FNAC Literatura 2011 (Regina Samagaio, Emílio Gouveia Miranda, André Domingues, Luiz Milhafre, Maria João Lourenço)
Teodolito e FNAC
3ª edição - Setembro de 2011
100 páginas

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Provérbios dos diabos

Será a linguagem o que mais leitores lembrarão deste livro, com a livre adaptação do narrador a cada conjunto de personagens que, por si sós, já fazem um uso abundante do vernáculo tal como ele existe dentro de casa ou no meio da rua.
A linguagem é bela, não haja dúvida, por existir já no limbo do arcaico (embora não devam ter passado mais de uma mão cheia de décadas sobre os últimos usos das melhores das expressões) que, por tal distanciamento, se torna novidade.
Esses traços da linguagem são  apenas os necessários para tornar as personagens retratos verosímeis. Mas retratos verosímeis dos malandros literários e não dos que existem na nossa pátria.
Por cá já nenhum é assim tão manso e tão matreiro. A violência substituiu a falinha, a cara tapada substituiu o disfarce aprumado.
Estes malandros literários - e malandros são eles todos, protagonistas do livro, que de uma ponta a outra não merecem senão censuras - correm para uma trama da qual as telenovelas, os romances de cordel ou os artigos de pasquim estão mais habituados a ocupar-se: um idoso com dinheiro no banco é o alvo de um grupo de burlões e de duas filhas com sonhos de viajar.
Seguindo de episódio quotidiano para momento de azelhice, os intentos de cada grupo esbarram nas dificuldades próprias de um país onde até para fanar ou herdar os empecilhos são mais que muitos.
O mundo criminal também tem burocracias que não ficam no papel, como ser filhas tem preceitos que não se aprendem em parte alguma.
Daí tantos falhanços e tantos meios entendimentos para as quais a estrutura em pequenos blocos de acontecimentos que nos atiram para diante, como atiram os personagens ora com uma palmadinha nas costas ora com um pontapé no rabo.
Adianto, sem medo de revelar nada que não se adivinhasse, que tudo caminha para um brilhante falhanço onde o velho não cumpre o seu papel de vítima na perfeição.
O dinheiro passou a expectativas goradas à medida que os malandros fugiam aos guiões estabelecidos.
Guiões dos quais todos têm de dividir os créditos com a sociedade que molda
Não há quem escape a ser censurado no final, o velho que desconfia tanto da família para se dar a  familiaridades com desconhecidos; os trafulhas tão afoitos nos seus planos com as suas limitações aventadas; e as filhas desejosas de outra vida tão desantentas a como criar uma relação com o pai.
Como não há quem escape a ver desfazer-se o seu sonho, a única recompensa possível para o ridículo de cada uma destas gerações que se põe a jeito de serem comentadas em público e expostas ao ridículo.
Se o título do livro faz uso de um provérbio, uso eu outros dois para concluir esta visão do livro, onde vemos que, de facto, todos os diabos são parecidos e é pouca a sorte que têm quando se aventuram por caminhos do alheio. Afinal de contas, os diabos que por aqui andam têm sempre um diabo maior vigiando, nem que seja o diabo do acaso da vida que nunca deixa a sabedoria popular por cumprir: o diabo dá com uma mão e tira com as duas.


Quando o Diabo reza (Mário de Carvalho)
Tinta da China Edições
1ª edição - Outubro de 2011
170 páginas