sábado, 17 de novembro de 2012

Para quebrar o círculo

Gonçalo M. Tavares diz no Posfácio - uma segunda metade de obra, para todos os efeitos - que só pela ordem alfabética se consegue progredir, como que em milagre, pela loucura das pequeníssimas ligações humanas invisíveis a quem olha em exclusivo para a imagem global ou para a história de individualidade.
Na verdade, o milagre da organização vem dessa maneira peculiar do autor encarar as fantasmagorias humanas como retratos significativos de um mundo que é uma personagem maior definida por tais individualidades.
Cada segmento de acção credível a aproximar-se lentamente de um surrealismo cujo fascínio vem da maneira como se torna aceite enquanto transformação natural da lógica ou da habituação.
Como Aaronson correndo em torno da rotunda anos a fio, acabando por tornar a estranheza em naturalidade.
Seguindo as pequenas ligações que definem o "mapa humano" que se justapõe a um lugar, de Aaronson a Matteo é um salto vertiginoso que merece uma segunda leitura em que o conhecimento do texto faz pausar a vontade de o percorrer, pois há magníficos detalhes que se destacam das pequenas histórias de vida.
Pois mais curiosa ou contraditória que seja a ideia, é mergulhando nos detalhes vamos compreender melhor o global do retrato composto por Gonçalo M. Tavares e, arrisco dizer, do mundo tal como ele é aqui fora antes de retrabalhado pela visão do autor.
Haverá poucos autores em Portugal (deixo o Mundo para outra altura) a seguir tal modelo de admiráveis universos em que tudo se interliga pela visão agregadora da sua imaginação. A base real serve para a construção de fantasiosas interpretações que tornam extraordinária a descoberta caricatural com que o autor olha à sua volta.
Para seu par chamaria José Carlos Fernandes e a sua A Pior Banda do Mundo ou, até com mais proximidade ao modelo individualizante de Matteo perdeu o emprego, Pessoas Que Usam Bonés-Com-Hélice
A referência vinda do mundo de banda desenhada não deixa de ser feliz tendo em conta a preponderância do trabalho gráfico neste livro.
As vinte e cinco fotografias de manequins levam ao limite a ideia de círculo que o autor desenvolve no carreiro de personagens (e depois discute no Posfácio) dando a ideia da possibilidade de todos os nomes e retratos não serem senão identidades possíveis para uma mesma individualidade, assente no retorno a uma base material comum e uma humanidade - repare-se nos olhos... - fingida.
Ou, se como o autor arrisca, o círculo apenas assim para ser na verdade uma elipse, talvez seja caso de dizer que cada história, cada nome, cada imagem é uma aproximação mais ou menos distante ao ponto nevrálgico de uma identidade humana transmutada pela idade ou pelo género.
Como grande jogo circular que é, a primeira parte do livro pode não passar da rampa de lançamento para uma continuação que partiria de Nedermeyer e a primeira rotunda, capítulo listado no índice mas sem correspondência no que toca a uma página.
Continuação na criação de um universo que, esgotado o ordenamento do alfabeto, repetiria as letras até completar outro círculo.
Se bem que as verdadeiras ligações são as dos nomes ao centro, pelo que poderão interessar mais os raios traçados - e os infinitos raios por traçar - do que o traço do círculo que se faz por via da tal primeira rotunda.
E no final do Posfácio o autor ainda se vem regalando com a ideia de que a qualquer nome se poderia seguir um outro, embora para todos existirem fosse inevitável a ligação.
Esse Posfácio é um risco do autor, pois acaba por ser uma reflexão anti-autoral. Uma abordagem explicativa mas tendendo a afunilar as perspectivas, embora (de forma aparente) proporcionando uma leitura mais colada à do autor.
Claro que essa forma de manietar a leitura é uma forma de a fazer explodir, espicaçando o espírito crítico do leitor por o tentar moldar.
Ainda aí, também, em círculos com o nosso entendimento até nos lançar para mais uma leitura do livro, agora informada e desejosa do contraditório: do caos conseguido pela leitura intercalada dos nomes dados aos acontecimentos e que assim os tornam humanos, dando a compreender o "monstruoso e informe", que é o mundo como um todo imperscrutável.
Mais um círculo (ou forma aproximada), mais um jogo, mais um desafio ao leitor.


Matteo perdeu o emprego (Gonçalo M. Tavares)
Porto Editora
2ª edição - Dezembro de 2010
216 páginas

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