sexta-feira, 16 de novembro de 2012

As extraordinárias páginas que não estão lá

Há um livro que se lê com a sofreguidão de quem logo gosta dele em excesso. Chama-se Uma Mentira Mil Vezes Repetida e é palpável.
Há outro livro que se imagina ler, que se quer ler, que se sente ler. Chama-se Cidade Conquistada, é um épico de mil e duzentas páginas, e está escondido por detrás das duzentas páginas do primeiro livro.
Este segundo é um livro que existe sem que ninguém o possa vir a tocar, mas que todos os leitores desejariam ter pois é a súmula da Grande Literatura escrita com atenção aos interesses individuais.
Cada leitor de Uma Mentira Mil Vezes Repetida encontra em Cidade Conquistada uma versão do épico que sempre quis ler, completando por si mesmo as páginas em falta em torno dos pequenos episódios que fica a conhecer. Tantas páginas em falta quantas as hipóteses de as reinventar.
Cidade Conquistada é, afinal, criação verbal - sustentada por uma capa igualmente inventada para encadernar textos vários de outros tantos autores - de um passageiro de autocarra apostado em chamar à sua criação o fascínio de quem se permita ouvi-lo. Para depois lhes deixar a impraticável promessa de lhes vir a emprestar o livro.
Promessa que não é um afastamento mas a oferenda de uma hipótese de sonhos e de criação individual em torno do episódio inventado e relatado na hora.
Pois é de criação e não de literatura que o livro fala, ainda que a Cidade Conquistada surja como obra de síntese das melhores características dos autores favoritos - da personagem, do autor, do leitor... - numa idealização impossível mas desejada.
Se pudesse, o leitor tornar-se-ia um editor omnipotente de toda a sua biblioteca e não apenas de um livro, fundindo um estilo de um autor com as ideias de outro livro e o ritmo de um terceiro.
Todos os jogos de citação de Borges, Kafka ou Bolaño acentuam pelo reconhecimento literário e tornam os leitores em garimpeiros das memórias bibliófilas que possuem em partilha com o autor (de um ou de outro livro). Mas não apagam o facto da ideia central estar para além do suporte exclusivo do papel.
Todo o meio de expressão da criação é uma forma de imperfeição. O que é extraordinário é a imaginação e não a obra.
Por mais que alguns o afirmem, nenhuma autor está plenamente satisfeito com o resultado final da obra pois esta nunca consegue captar aquilo que a mente expressou numa forma que é única e absoluta, sem limitações ou dúvidas.
Daí que o personagem-criador do autocarro nunca tenta passar o seu livro inventado a papel, mas tente expressar de imediato e da forma mais livre possível a sua invenção.
Assim atingirá o pico de efeito com que muitos autores apenas sonham. Um efeito apreendido pelo autor de imediato, visto que quebrou a barreira da falta de convivência do autor com o leitor.
A par da barreira do autor com a História. A sua fabricação vai ao ponto do mito em torno da vida daquele livro que supostamente tem nas mãos, criando um intricado percurso para a passagem do livro do alemão ao português e dos anos de 1940 ao século presente, a que soma os próprios estudos académicos que o livro já mereceu.
Mas e sobretudo, essa sua forma de concretizar a obra de forma efémera - embora certamente perene a nível individual de quem parte com a consciência de um mero excerto - permite-lhe nunca ter de "dar a obra por acabada", consessão triste que os autores fazem por não poderem (ou não os deixarem) passar a vida toda a retrabalhar o mesmo livro / a mesma tela / o mesmo filme.
Sendo uma obra sempre em construção, permite ao seu autor sentir-se a cada momento realizado de maneira distinta; permite-lhe engrandecer sempre o resultado que forma na sua mente; permite-lhe não aceitar que a concretização empalideceu a sua imaginação.
Só mesmo o risco de perder tais conquistas o leva a abandonar o projecto, quando num toque de criação usa elementos da realidade à sua volta para pintar o mito e, nessa altura, percebe o quão baço se pode tornar o livro quando está próximo de uma espécie de concretização.
Só há um livro que interessa realmente ler e divulgar, o livro inalcançável que é perfeito para todos os leitores por ter para cada um uma dádiva intransmissível.
A versão sonhada de Cidade Conquistada é a grande oferta que nos faz Manuel Jorge Marmelo, transformando cada um de nós em viajante de autocarro - e que bom foi ter lido o livro no interior de uma sucessão deles -, tanto receptáculo quanto criador de um novo e distinto Cidade Conquistada.
Mas não há como deixar de afirmar que a grande obra é o real Uma Mentira Mil Vezes Repetida que após duzentas páginas - excelentes e mais do que auto-suficientes - nos deixa a desejar mil e duzentas páginas mais.


Uma Mentira Mil Vezes Repetida (Manuel Jorge Marmelo)
Quetzal Editores
Sem indicação da edição - Setembro de 2011
208 páginas

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