quarta-feira, 27 de junho de 2012

Se isto é um policial

Dizia um amigo do meu pai que as mulheres não sabem escrever policiais.
Claro que Agatha Christie, Patricia Highsmith ou Donna Leon contrariam tal ideia, mesmo se Damas do Crime é uma designação que parece prometer a fuga à condição feminina de "escritora de policiais" para um patamar em que se admite que algumas mulheres são capazes de igualar ou superar os homens.
Seja como for, de tempos a tempos a boutade confirma-se e as razões para tal parecem constituir um padrão.
Este trata-se de um caso exemplar em que a autora encontrou (ou assim pensa) no policial um formato fácil para chegar aos seus propósitos.
A sua vontade é a denúncia do sofrimento da condição feminina - do sofrimento que se arrasta uma vida inteira só por se ter nascido mulher - mesmo quando se pensa que as suas causas ficaram enterradas para sempre (o que faz do livro uma metáfora muito evidente).
Podem os leitores achar o contrário durante algumas páginas, mas há um momento em que se revela a verdadeira razão do livro e este se afasta do policial em direcção à noveleta.
Dois quintos do livro lido e até o leitor menos atento será incapaz de ignorar as pistas exibidas abertamente para revelar os crimes que a civilidade islandesa continua a calar.
Como tal, o policial que o livro deveria ser está perdido desde logo, mesmo se o culpado - essa redução de um policial a um factor mínimo - ainda possa vir a ser uma surpresa para alguns leitores (embora o truque usado seja tão antigo quanto o texto de A visita inesperada, por exemplo).
Se a meio do livro ainda houver alguém que não tenha percebido o que significa o aquela cabeça com os genitais enfiados na boca, a autora trata de mostrar aquelas páginas caóticas do diário da jovem rapariga - entretanto adulta a trabalhar num centro de apoio a vítimas de violação (e, depois, morta). Se, mesmo aí, o leitor demorar a perceber, então esse será um leitor pouco interessado em investir - com ou contra- as quinhentas páginas de um livro que se quer literatura de elevada qualidade.
Até porque todos os outros pequenos mistérios que se agregam ao do crime actual acabam por ser consequência desse acontecimento do passado que deixou a marca de uma cabeça encaixotada. O seu encadeamento nunca é casual mas é a consequência mais básica de um conjunto de eventos: uma jovem rapariga escondida da vida pública durante um ano e que, já adulta, procura estabelecer contacto com um homem mais novo que lhe deveria ser completamente estranho.
Fosse para contar esta história ou fosse para executar a aproximação ao policial, os leitores mereciam que o livro tivesse bem menos páginas. As derivações minuciosas mas inúteis (sobretudo depois de tudo se tornar tão evidente) não dão um verdadeiro retrato da Islândia.
A demora frusta ora porque na primeira metade do livro nos afasta da linha central da trama, ora porque na segunda metade do livro nos atrasa a finalização de uma história que está mais do que resolvida.
Até porque não há nenhum factor redentor para a investigação, conduzida por aquilo que imagino (porque, de facto, nunca deles li senão a sinopse e, portanto, sirvo-me do preconceito) ser a figura tutelar dos romances femininos de mulheres nas faixas etárias terminadas em "onas".
Thora Gudmundsdottir é uma advogada que parece pouco interessada em perder tempo com o seu cliente acusado de homicídio. Se vai atrás da verdade de forma arriscada e à margem da boa educação (mais do que da legalidade) é porque está desejosa de abandonar a pequena ilha e voltar para a capital onde o seu namorado alemão está prestes a chegar.
Conta, ainda para mais, com o apoio de uma assistente mais jovem, capaz de descobertas essenciais, mas a quem Thora apenas inveja - com um oco moralismo crítico - a vida sexual liberta que a vê praticar todas as noites.
Voltamos a ter de olhar para a questão da feminilidade - e nada me move contra tal temática por si mesma - agora na forma inversa, da independência que esta também pode proporcionar.
Trata-se de exibir o acessório aos eventos do livro ou, pelo contrário, de tornar acessório o crime que definiria o romance. Tudo para dar a conhecer uma crueldade que assombra as mulheres no país do gelo e dos vulcões e que, por isso, não admite dificuldades (leia-se manutenção dos mistérios) ao leitores.
Aproveito o que Alexandra Lucas Coelho ouviu dizer a Caetano W. Galindo, para afirmar que se o leitor quer ficar com os pés na mesinha de café como na trilogia Millenium, então encontrou o livro certo.
Falso policial, romance de acasos telenovelescos, cujo tema "maior" está mais do que revelado naquela citação estrondosa da capa sobre ser esta a resposta islandesa a Stieg Larsson.
Se isto é o policial moderno e a visão do que será o seu futuro, prefiro reler os policiais datados que não procuravam fazer retratos fiéis da actualidade a que pertenciam. Esses onde a narração do mistério ainda era a força motriz!

Uns parágrafos finais para falar da edição. Não importa quão boa sejam o design e a encadernação de um livro quando, depois, durante quinhentas páginas, as gralhas são constantes e impossíveis de ignorar.
O esforço de leitura não chega a causar a desistência do livro mas incomoda e deixa a nú uma revisão deficiente que, aos olhos dos leitores exigentes, deixa mal vista a editora mais do que quem esteve a cargo dessa tarefa.


Cinza e Poeira (Yrsa Sigurdardóttir)
Quetzal Editores
Sem indicação da edição - Junho de 2011
512 páginas

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