segunda-feira, 18 de junho de 2012

Músico e/ou escritor

Esta história do Sul dos Estados Unidos da América é contada por Deus e o Diabo. Figuras do Antigo Testamento cuspidas como ácido nas palavras dos fanáticos, pregadores e atormentados que vivem à base da sua Fé ou Loucura, consoante o grau de cinismo que o leitor lhe queira estampar.
Este Sul é um local que se preserva pela dureza das crenças e dos actos. Se há uma beleza no Sul - lugar mítico da narrativa americana - ela pertence a algumas pessoas, focos de luz entre o obscuro gerado pelo coração humano comum que transforma uma american small town num antro de crueldade obcecada com um Bem que morre com cada acto da população local.
A beleza vem de Euchrid e Beth, crianças - a primeira criança eterna, a outra criança - em ambiente explosivo em que a ignorância serve de rastilho. Eles olham-se mutuamente encontrando o que a comunidade nunca será capaz de ver.
Comunidade que reage com um grau de crendice e preconceito à mesma situação: crianças nascidas como estranhos no seio da comunidade.
A diferença? Euchrid é mudo (e visto como o idiota da aldeia) e parte de uma família disfuncional. Beth é a menina pura que cai nos braços de um homem religioso a precisar de uma missão.
Aclamam uma criança, rejeitam a outra. O ressentimento pertence a ambos porque Euchrid vive numa crescente solidão e porque Beth vive numa crescente constrição.
Euchrid sonha em vingar-se de todos os que o atormentam (de todos, portanto) mas acaba por ser a resposta inabalável às suas preces, dando aos seus conterrâneos a hipótese de odiarem e amarem o que querem ver como encarnações das figuras tal como eles as julgam encontrar descritas na Bíblia.
Afinal Euchrid é, como julgava na sua loucura alimentada pela solidão, a figura que Deus enviou àquela terra. Não a mão vingadora de Deus, mas a apaziguadora. Apenas a Fé cega e fatalista dos outros não lhes permite ver isso.
Mesmo assim sentem a mão de Deus na palmada violenta que as pessoas lhes assentam, erguendo entre eles o último foco de pureza. Claro que toda a pureza acaba destruída.
Aqui não é excepção pois Euchrid, desde o parto em que é o único dos gémeos a sobreviver até à morte em que paga por crime alheio, está a sacrificá-la para redimir os outros.
Redime o irmão vivendo por dois a vida de desprezo e violência que lhes caberia. Redime Beth porque acidentalmente a faz sentir o amor que as mulheres que a vigiam apenas lhe sabem prometer em abstracto. Redime até a comunidade porque sendo morto a deixa crer que vingou o mal e foi recompensada com um milagre.
Depois de apagada a pureza, a comunidade - ignorante - ainda continua em busca do profeta. Quer forçá-lo a ser como deseja. Mais facilmente cria o demónio ao querer afastar as características do que nunca poderia ter esse papel.
Nick Cave compôs um relato de uma beleza figurativa nascida no meio do caos violento. O seu uso da linguagem, excessivo e inventivo, é sedutor mesmo ao descarregar nos leitores imagens dolorosas.
Mas o retrato de três décadas de uma comunidade sulista sob amarras religiosas é um feito difícil, sobretudo com tantas variações nas vozes narrativas em torno da preponderância daquela que está para sempre silenciada - levantando dúvidas (talvez propositadas) sobre de onde lhe vem aquela qualidade -, e Nick Cave não o alcança.
A veia literária foge-lhe várias vezes para a sua inspiração de cantautor e certas passagens parecem pensadas a propósito do género de episódios extravagantes que canta na sua música, valendo pelo efeito fonético e não pelo seu papel na estrutura do romance.
Isso prejudica o livro porque distrai o leitor - sobretudo se também conhecer a música de Cave - tal como fragiliza a definição de algumas personagens (embora esta questão possa acabar por ser consequência directa da anterior).
Terá sido uma tentativa mais corajosa de criar uma obra literária do que era A Morte de Bunny Munro. Nesse livro Nick Cave pareci escrever apoiado no seu instinto (e estranheza pessoal), enquanto aqui parece querer incluir muitas das suas obsessões num monumento de inspiração que o coloque ao lado do inevitavelmente recordado William Faulkner.
Mas em A Morte de Bunny Munro o humor negro e o foco literário estão apurados como aqui ainda não estavam. Talvez os livros devessem ter surgido em ordem inversa, para os defeitos ficarem encobertos na bela cacofonia desse outro livro e este fosse, agora, mais conseguido.


E o burro viu o anjo (Nick Cave)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Março de 2011
372 páginas

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