sábado, 31 de dezembro de 2011

As aventuras de um sujeito vulgar através da União Soviética

O humor literário é uma frágil entidade que demasiado analisada perde a sua força. O mistério de como resulta quando certos autores o tentam e com outros não continua a escapar-nos porque está para lá da análise científica da qualidade de escrita ou dos temas escolhidos ou de um punhado de outras razões que se queiram invocar.
O humor resulta sempre para uns e não para outros dos leitores mas o humor que perdura funciona para todos mas para cada um de uma maneira única e indefinível.
Não estou a escrever estes primeiros parágrafos para desculpa uma crítica vaga que parece ter dificuldade em começar a compôr-se como um todo na minha mente.
Estou a escrevê-los porque a hilaridade deste livro não se transmite indirectamente com os efeitos desejados. Bastou tentar recontar um dos meus episódios favoritos que ele guarda e logo ele perdia o humor.
Nada aqui terá o resultado simples de passar o livro para mãos alheias e deixar que a pessoa descubra o episódio que o faz rir.
Para mim foi logo o inicial em que o autor conta a sua infância em que inventa tais histórias que elas começam a gerar-se à sua volta ao mesmo ritmo que ele as cria.
Os percalços dele lembraram-me do que seriam as aventuras de Sawyer e Finn numa URSS de regras apertadas mas com espaço para uma inocente subversão.
A sua vida continua a ser um poço de desventuras, seja destino ou decisão própria que ele se envolva nelas. Os muitos episódios que vive são a fonte do humor revisionista do seu relato e vão da ponta evoluída da União Soviética aos seus recantos mais remotos, tal como esse humor calha a todos, do poder político aos pequenos rebeldes rock Moscovitas.
O potagonista - que facilmente se confunde com o autor - carrega na ironia contra o seu país de origem. Aquele país limitou-o e ainda o enraivece. Mas até as mais duras palavras, quando toca a comédia, têm um fundo de apreço pelo país que também lhe proporcionou a possibilidade tanto de trabalhar em isoladas regiões agrícolas como de fazer o serviço militar num posto qualificado.
Proporcionou oportunidades de vida ou de criação. Essa é a grande dúvida que sobra, se o protagonista nos está a contar a verdade da sua vida ou a falsidade da sua imaginação.
Ele próprio nos avisa de tal possibilidade, mas seja ficção ou biografia o relato da sua vida dá a conhecer um país excepcional e terrível, tão cheio de contradições que é o único cenário possível para todas estas páginas de desastres pessoais.
O retrato de um país que dá lugar a excelentes histórias tão - tão! - difíceis de acreditar que só podem ser verdade - para alguém, mesmo se não quem agora os relata.


Militärmusik (Wladimir Kaminer)
Cavalo de Ferro
1ª edição - Junho de 2003
160 páginas

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Frankenstein, mais de nome do que de essência

As mais recentes e modernas encarnações do monstro de Frankenstein de que tenho tido conhecimento têm surgido através de banda desenhada (por exemplo, Seven Soldiers of Victory) em que o monstro assume o nome do seu criador e existe ainda incompreendido mas sendo uma mais valia para o mundo.
Aqui a sua existência continua a revelar-se como a de um herói - na medida possível em que um monstro o pode ser - e que agora assume um nome, Deucalião ou não fosse ele o filho do Prometeus moderno.
Victor deixou de rejeitar as suas criações para passar a usá-las como peões para a sua distopia futura em que se assume como ditador de uma obediente raça nova. E o nome que dá às suas criações é meramente funcional, pois mesmo humano - Erika ou Randall - vem seguido de um número que os contabiliza e os deixa saber não serem mais do que um passo intermédio da experiência em curso.
Montado este cenário, Dean Koontz consegue cruzar referências do romance original a elementos de thrillers e neo-noirs de décadas recentes. Pelo caminho acrescenta ainda várias citações ao género em que Frankenstein foi pioneiro, sendo a retransformação de algumas das ideias de Asimov a mais evidente.
Estamos longe da romântica reflexão sobre a Humanidade de Mary Shelley ou a humoradamente subversiva visão da sociedade de James Whale.
Esta é uma trama de acção e mistério a caminho do confronto entre criador e criatura, com as intromissões que pelo caminho se exigem para que o embate não surja demasiado cedo.
No fundo Koontz traçou uma misturada de elementos que resumem várias décadas de elevada criação a um formato mais fácil e atractivo para o público generalista moderno.
Afinal esta é a segunda vida de um projecto televisivo e, sem dúvida alguma, há uma construção que serve a renovação do interesse na trama de curto prazo enquanto a trama maior se desenvolve lentamente.
Nota-se isso mesmo naquela que, desde logo, tem de ser a grande queixa a fazer ao livro: os capítulos curtos que não parecem precisar de estar assim pensados, mesmo sendo esta a a versão livresca de um projecto por episódios.
A história tem de seguir personagens desirmanadas em direcção a um momento de inevitável agregação das suas histórias.
Os eventos policiais que constituem um arco narrativo fechado neste primeiro livro da trilogia são mais interessantes do que são produtivos para a composição das personagens. Pelo menos para as personagens de Deucalião e Victor, que se esperam terem o protagonismo que a sua longuíssima relação de antagonismo exige.
O efeito é cativante, apesar de tudo, sobretudo por culpa de Randall Seis, uma estranha personagem cuja vida interior molda o seu comportamento no exterior do mundo com menos restrições morais e mais foco em elementos que raras vezes preocupam os autores ou até mesmo a vida quotidiana dos leitores.


Frankenstein - O Filho Pródigo (Dean Koontz)
Contraponto
1ª edição - Janeiro de 2011
304 páginas

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Quase... nada

O Quase Romance de Miguel Sousa Tavares é uma quase memória, uma quase reportagem, um quase diário e um quase livro de viagens.
É um livro que não cabe numa categoria não porque extravase os limites da definição de várias delas mas porque é demasiado estreito para satisfazer as exigências de qualquer uma delas.
Falta-lhe uma voz que o comande e que lhe dê forma. Tem como narrador um homem levado pela memória de uma velha foto que lhe cai nas mãos. Mas esse narrador parece determinado em ser preciso sem nunca se deixar levar pela pieguice que o seu relato de terna memória deveria denotar.
Enumera as câmaras que transporta mas quando chega o momento de revelar que através de uma fresta de porta olhou o corpo nú da sua companheira de viagem, o seu grande culminar de emoção é um triste Estava cansado de mais para desviar o olhar.
Pode até ser que a mulher agora relembrada seja merecedora de um livro, não pelo seu corpo mas porque o seu espírito é inolvidável, mas se o narrador lhe olhou o corpo convinha que o tivesse feito por apreço ou porque no meio do deserto a beleza feminina é escassa e o olhar ainda pode ser uma meiga forma de elogio e desejo.
Claro que o deserto é algo que também não existe na sua voz. Não arrisca falar do deserto, dar as impressões pessoais que poderiam soar falhadas mas mereceriam o elogio pela sua ousadia.
A viagem define-se pelos atrasos, pelos quilómetros, pelos enganos. Raramente se define pelo que está à frente dos olhos, por algo mais do que as acções descritas com a minúcia que vinte anos de distância já não deviam permitir.
Só quando ela, Cláudia, fala é que o livro ganha personalidade porque corre riscos.
Claro que a estratégia é das mais fáceis possíveis, visto que ela está morta - morre no final do livro diz o primeiro parágrafo, que é o mesmo que matá-la logo de início - e vem falar-lhe numa forma de wishful thinking que ajuda a completar os espaços em que falha a exactidão do narrador: Mas, depois, veio e deitou-se abraçada a mim. Ou assim me pareceu.
A incerteza dele dura pouco, pois Cláudia só fala por dois capítulos, mas deixa as impressões mais profundas do livro, como ao falar da transformação da ordem em caos quando a tempestade de areia os apanha e dando a conhecer o medo e a beleza que se apreciam sendo fustigados por ela.
A voz dela faz sentir o deserto e dá a conhecer o preço físico da viagem. Os parágrafos que lhe pertencem são, sim, quase um texto por direito próprio. Um conto apenas, talvez, que ficou abafado pela voz dele.
Ele, arrogante, afirma ao início lembrar-se de todos os detalhes para depois duvidar do nome do barco em que embarcou ou - o que deveria ser mais importante - se ela o abraçou ou não.
Ele, irritante, não consegue evitar acrescentar informação redundante para o leitor atento, até no detalhe da inexistência do Euro quando já tinha vincado que a viagem começara em 1987.
Ele, coitado, não tem voz e deveria deixá-la falar a ela o tempo todo, mesmo que Cláudia já só possa falar porque ele lhe imaginava uma voz.


No teu deserto (Miguel Sousa Tavares)
Oficina do Livro
1ª edição - Julho de 2009
128 páginas

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O absurdo caso português

Este livro trata de uma operação militar secreta exectuada pelos ingleses contra barcos alemães em território português e de todos os malabarismos judiciais e diplomáticos que vieram depois para resolver - de forma pouco ortodoxa e bastante atabalhoada - os problemas que daí advieram.
Há um ridículo que atravessa todo o caso, sobretudo no comportamento português, que é inacreditável para o leitor que agora descobre o que se passou.
A atitude do governo português da altura, afirmando até ao fim a versão que todos já sabiam ser falsa, só podia mesmo resultar porque os interesses que a II Guerra Mundial obrigava a manter em equilíbrio calavam (quase) toda a indignação alheia.
A desinformação inglesa contribuiu igualmente com alguns excelentes episódios, o melhor deles todos a criação de um mito popular que tornava um fracasso num sucesso por via de um livro e depois de um filme: The Sea Wolves.
Quem se lembrar do filme sabe que este tem uma história de espionagem muito pouco sólida, com tendência para emular os feitos românticos de James Bond e adicionar humor fora de tom aos diálogos dos três protagonistas. Com O Espião Alemão em Goa ficamos a saber porque assim é e, mais ainda, ficamos a saber que mesmo após 30 anos o orgulho inglês não passou sem embelezar a realidade com as presenças de Gregory Peck, Roger Moore e David Niven.
A excelente investigação de José António Barreiros parece até estupidamente fácil e evidente em certos momentos para que perdure tal mito britânico.
O autor diz na apresentação a esta segunda edição do livro que se trata de uma história real contada como se fosse uma história de ficção.
Não concordo com ele porque o seu estilo tem mais precisão do que fluidez, mas entendo que as suas palavras sublinham o grau de espanto que merece toda a conjuntura que ele descreve.
Há alguns capítulos em que a ironia do autor vem ao de cima, em que o absurdo é de tal ordem que nem o mais pragmático dos autores conseguiria relatar o caso sem deixar transparecer alguma emoção própria. Mas ao longo da maioria do livro é com exactidão autoral que Barreiros conta o que tirou da sua investigação.
O contexto absolutamente correcto para o qual nos transporta merece ser elogiado, mas a verdade é que para ler o livro de forma fluida é necessário aprender a seleccionar intuitivamente as notas de rodapé que devem ser lidas ou deixadas para uma leitura tardia em conjunto com os anexos.
Nem que seja por um motivo de identidade (quiçá, responsabilidade) patriótica - até mesmo para aguçar o sentido auto-crítico - vale a pena ler o livro e entender o contexto do que foi o affaire português com ambos os lados da Guerra por debaixo dos lençóis da neutralidade.


O Espião Alemão em Goa (José António Barreiros)
Oficina do Livro
1ª edição - Novembro de 2011
192 páginas

domingo, 18 de dezembro de 2011

Uma companhia para Allan Poe

Louis Bayard consegue, em três capítulos, construir uma personagem forte que mereceria o epíteto de detective privado a par dos maiores da literatura.
O leitor está praticamente conquistado e ainda nem há sombra de Edgar Allan Poe, possivelmente o factor de maior atracção para este livro.
Augustus Landor - Gus Landor como nome de guerra - é um polícia reformado chamado a West Point para investigar a profanação de um cadáver e o seu primeiro acto é a imposição da sua autoridade (ainda que civil) à chefia militar perguntando-lhes se querem que descubra quem matou o cadete ou quem roubou o coração ao cadáver.
Em sentido contrário, os militares apenas conseguem pedir a Landor que pare de beber com a regular obstinação que o caracteriza até que a investigação termine.
Fica claro que Landor tem as características que fazem um detective interessante de acompenhar na sua investigação, embora se isso serve para resolver o caso seja obviamente a incógnita que adoramos que acompanhe o próprio mistério do crime.
O recruta que ele escolherá para o ajudar é Poe, outra figura que levanta mais dúvidas do certezas.
A dupla entende-se mas raramente consegue avançar no caso. Dedicam-se a debater temas variados e profundos, bebem em conjunto e alvitram hipóteses sobre quem serão os envolvidos. Mas conclusões que possam transmitir aos líderes não as têm.
Isto também porque se acumulam as alturas em que os dois parecem esquecidos do caso, entretidos na sua camaradagem.
Até pode ser que isso se revele um pouco frustrante visto que há um espesso mistério sobre o qual queremos saber mais, mas acompanhar a relação dos dois e desvendar a paralela evolução do imberbe homem que ainda é um Poe que já vamos reconhecendo como a figura literária que ficou para a História e do peculiar Landor que está longe de viver à imagem de "bicho do mato" que criou para si.
Torna-se complicado, depois do foco se virar para a relação dos dois, ficar satisfeito com a resolução do livro. Não falo da surpresa final que até se coaduna bem com os desvios feitos à investigação, mas dos eventos que ainda antes disso proporcionam uma razão para o coração ter sido retirado ao cadáver.
Ainda que seja um pedaço de narrativa no espírito de algumas das histórias de Allan Poe, não deixa de ser um exagero pouco ligado ao que foi construído antes.
Não estraga o romance até porque o que mais interessante que ele consegue é a imersão do leitor no estilo da literatura da altura em que ele decorre.
O registo narrativo é próprio de alguns dos primeiros policiais, directamente dirigido ao leitor como se tivesse sido dado à estampa num jornal e com um texto lúcido que parece vir de um afastamento intelectual do caso em que o narrador se viu envolvido.
Este é interrompido amiúde pela transcrição dos relatórios de Poe, num estilo que imita com talento - e até cita - aquele que associamos ao homem que foi, também, um dos criadores do policial moderno.


Os Olhos de Allan Poe (Louis Bayard)
Saída de Emergência
1ª edição - Abril de 2011
416 páginas

domingo, 11 de dezembro de 2011

Um avô contando histórias

Este é o terceiro livro de Luis Sepúlveda que leio desde que iniciei este blogue e, assim de memória, serão pelo menos outros tantos que havia lido antes.
Não se trata de um autor que ache bom o suficiente para estar sempre a regressar a ele, até porque apenas por uma vez - com Diário de um Killer Sentimental - ele esteve próximo de deixar uma marca permanente na minha existência de leitor.
Mas é um escritor com um uso agradável das palavras e livros de leitura breve que se encaixam bem de permeio com duas outras quaisquer leituras. É, se tal classificação existisse, um escritor de meio da tabela que não surpreende positiva ou negativamente perante as expectativas geradas.
O que é o que volta a acontecer com este livro, embora pela primeira vez me tenha sentido cansado de ler as histórias do autor - apesar de não ocuparem mais do que uma mão cheia de páginas.
Como no seu último livro que li, Histórias daqui e dali, Sepúlveda usa seu melhor estilo de contador (oral) de histórias.
Há mesmo uma revelação de que é essa a sua forma de se atirar a estes pequenos relatos quando abre uma das suas histórias dizendo que é a favorita dos seus netos.
Não há nada de mal nisso, aliás era o forte do livro anterior que me passou pelas mãos. Mas o livro anterior tinha uma capacidade de sedução que este parece ter perdido.
Trata-se das histórias contadas que deixaram de ser exóticas com uma base emocional com que nos podemos identificar. Passaram antes a ser histórias muito mais chegadas ao próprio escritor, em grande parte dedicadas a pessoas que conhece ou admira e a situações que viveu.
Por isso é necessário gostar do homem para se gostar do que nos conta. É preciso ter-se sentimentos fortes por ele para se admirar os nobres sentimentos que ele quer transmitir.
Estes pedaços de realidade que ele vai trazendo à baila não são admiráveis pedaços de literatura, são apenas memórias simpáticas em que ele passou a ser personagem.
Verdade que ele viveu muito - ou, pelo menos, viajou muito e cruzou-se com muitas pessoas inusitadas - mas isto já são as histórias que um "simpático velhote" tem para legar a uma família que o recorde como figura tutelar, uma lenda para gerações que estão por vir.
Se os leitores fazem já parte dessa família é uma questão que estará por responder. Desconfio que as vendas do livro dirão "Sim" a isso, mas também sinto que Luis Sepúlveda presumiu demais ao tomar os leitores como mais dos seus netos.


As Rosas de Atacama (Luis Sepúlveda)
Porto Editora
1ª edição - Outubro de 2011
144 páginas

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Desconfiança em que confiar

Todos os leitores têm uma desconfiança própria para com alguns livros, aquilo a que se chamará preconceito e que sinto que aumenta tanto com o número e a variedade de livros que se lê. Mas que também aumenta com o exercício crítico sucessivamente realizado.
Essa minha desconfiança activou-se para com este livro quando já era tarde demais. Activou-se perante o título a que só dei a devida atenção já na página de rosto onde as reticências deixam de ser um pormenor que a mente tende a ignorar quando na capa estão em jogo os efeitos de cor.
Não tenho estatística que me apoie, mas não me recordo de título algum - ou título algum relevante - que faça uso de reticências.
O título do livro é o local onde tal marca de pontuação não faz falta. O mistério do que fica por dizer no título é, naturalmente, tudo o que vem depois dele mas que o terá originado.
Usar reticências no final do título do livro é abusar de um estilo que não tem razão de ser e que, por isso, gera a forte desconfiança de que vim falando.
A desconfiança, neste caso, mostra-se certeira e justa. Tal como no título, por todo o livro o abuso de um estilo inconstante e capaz de impressionar apenas os ingénuos. Trata-se do barroco do bacoco, se ninguém levar a mal que também eu jogue com as palavras.
A autora não atenua esse estilo em parte alguma do livro. Não evita duplicar as metáforas quando uma era suficiente. Não evita buscar um vocábulo menos lembrado para engalanar os seus parágrafos quando a banalidade do sinónimo mais comum lhe assentava melhor. Não evita qualquer adjectivo que a inspiração do momento lhe tenha sugerido quando a releitura mostra que é insensata a sua presença.
O estilo assim tão extravagante até seria útil em certas passagens que confessamente são delírios do protagonista, mas como permanente exercício de memória parece forçado, sobretudo nos tempos dedicados à assimilação da vida na pacata e simples aldeia tão tipicamente portuguesa.
Uma aldeia que até é a fonte das duas melhores ideias do livros, historietas de maldade (o pequeno delinquente que se impõe como tirano) e mitos (os fantasmas que percorrem encruzilhadas na estrada) que manietam as pessoas enquanto agigantam os espaços esquecidos na imagem global de um país.
O resto do livro é um thriller como desculpa para o exercício de linguagem que martela sempre a mesma nota.
Como vinha escrevendo, há passagens que precisavam de ser mortiças na linguagem, soar mesmo banais e corriqueiras. Porque não o fazendo, não matizando a memória do protagonista, a autora revela pela própria falta de surpresa as intenções perversas com que joga o entendimento do leitor.
Qualquer leitor experimentado lhe diria que a manipulação narrativa não se joga assim - sobretudo, assim tão tardiamente.
Desconfia o leitor porque o texto está a ser demasiado indiferente (como desconfiaria se estivesse a ser demasiado intencional) e fica mais alerta, tornando a surpresa em mera confirmação (da desconfiança, pois claro).
Entre a desconfiança a abrir e a desconfiança a fechar, está o miolo da confirmação de um livro falhado.


Na Senda da Memória... (Sónia Cravo)
Esfera do Caos
1ª edição - Setembro de 2011
160 páginas