terça-feira, 30 de março de 2010

Renascer pela palavra

Vladimir Brik, o homem que persegue, um século depois, a história de Lazarus Averbuch é um homem perdendo a noção de quem é.
Emigrante bósnio nos Estados Unidos da América, perdeu a ligação às celebrações com que os restantes emigrantes recordam a sua cultura, mas não é, de todo, um cidadão americanizado, nem pretende ser.
Casado com uma neurocirurgiã, numa relação que parece sustentar-se num incómodo silêncio, numa generalizada incapacidade de partilha e numa fúria ocasional.
Escritor por concretizar, incapaz de sustentar a casa como a tradição bósnia exige do seu papel de homem.
O projecto que enceta, com a benesse de uma bolsa, é a sua fuga - e quem sabe se eventual reencontro.
Afinal de contas, a pouco clara morte de Lazarus parece ter menos a contar do que o projecto de um livro deixaria perceber.
Mas com esse projecto como justificação, ele parte para o velho país de que ele, como Lazarus, escapara.
Lazarus, além de ser a personagem que ele persegue, é a sugestão do ressuscitado, o homem que Jesus tornou um perpétuo imigrante da Terras dos Mortos, que talvez ainda vagueie pelo mundo sem terra própria.
Brik procura definir a sua história, procura o relato que lhe pertence, procura a hipótese de ser tudo o que queira, tal como o seu companheiro de viagem, Rora.
Rora tem milhares de histórias para contar, todas elas prontas a partilhar. Se são todas verdadeiras poderá não importar, pois Rora a cada história reinventa-se, renasce para o seu ouvinte.
Rora viverá para lá da morte pois deixou de si aos outros as muitas vidas que viveu, nem que fosse apenas na sua cabeça.
E Brik terá de perceber, no final, que para renascer do que era até àquela viagem não basta a viagem, tem de construir o relato da sua viagem, do que viveu e do que nele se transformou ao longo dela.
O Projecto Lazarus é a concretização do homem perdido, é um projecto de vida, de transformação, de revelação de si próprio ao mundo.
Uma vida faz-se não só vivendo, mas relatando-a aos outros para que a memória salve essa vida da morte.


















O Projecto Lazarus (Aleksandar Hemon)
Civilização Editora
Sem indicação da edição - 2009
304 páginas

sábado, 27 de março de 2010

O limite dos relatos

Lemos aqui sobre os limites do humanamente possível, quer da parte de quem sofre, quer da parte de quem inflige esse sofrimento.
O limite a que uma pessoa cala e permanece onde só o mal a espera e como esse mal retorna mesmo quando já se julga em segurança. O limite a que uma pessoa, por sua vontade ou por pura estupidez, anestesia a consciência e a culpa do que deixa ou do que está a fazer.
Esses limites não vêm com reflexões conscientes das suas causas, não têm fundo terapêutico, são meros pontos a que se chega sem mais.
Apesar disso, o fluxo de consciência de Precious amansa o relato, que tem momentos de escape que minam o impacto directo do relato.
Amansa pois não é ela uma personagem que consiga sustentar o relato por si mesma, é o sofrimento a que parece condenada que a torna digna de nota.
Quando as suas intervenções pessoais surgem no texto, são como um pequeno momento para respirar quando estamos mergulhados no horror.
Particularmente preferia que o relato fosse inexorável com o leitor, a personagem desabrigada perante os eventos, o relato tão desprovido de emoções ou escapatórias que o leitor estaria a ser ele próprio massacrado para a realidade do mundo de que em geral está alienado.
Mesmo aqueles que têm consciência do género de crueldade que sofrem estas vítimas olham-no com um certo desfasamento, com leviandade de quem não sente o que ouve.
Um relato na primeira pessoa, clínico ainda que obviamente pessoal, era a forma mais eficaz de chegar - como parece ser a intenção geral do livro - à consciência de quem enfrenta as páginas do romance.
Aliás, a amostra final do livro de turma, onde os vários personagens da aula de literacia escrevem os seus próprios relatos de anos de abusos e solidão, com um estilo pessoal mas sem floreados de espécie alguma.
Estes relatos, também por virem no final do livro, são o que de mais forte guarda o livro depois de se encerrar.
Cada uma dessas personagens merecia o seu próprio espaço, possivelmente num livro de contos sobre o sofrimento.


















Precious - A força de uma mulher (Sapphire)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Fevereiro de 2010
184 páginas

sábado, 20 de março de 2010

Sete amores

Gosto muito de contos, das suas características próprias, daquilo que os grandes contistas conseguem atingir com um meio mais curto.
Além disso, a mera hipótese de regressar à escrita de Bernhard Schlink, que já me tinha fascinado com O Leitor, levaram-me directamente a este livro.
O Leitor não era um romance muito extenso, mas aqui Schlink revela ainda mais a economia de meios com que é capaz de construir um riquíssimo cenário narrativo enquanto reflecte sobre temas que nos são comuns, mesmo quando partem das particularidades do país que ele habita.
Cada um dos sete contos aqui presente trata das diferentes formas de expressar e de falhar no amor. E em sete contos há espaço para todo o amor, paternal e filial, do amor feito de traição e do amor incontido.
As mais diversas expressões do amor estão aqui, do polígamo que amava cada uma das suas mulheres de uma forma distinta mas que amava ainda mais a sua própria solidão - mas a quem as mulheres demonstraram amar com cuidados redobrados; ao rapaz que amava um quadro - e a ideia de rapariga que ele encerrava - mais do que amava qualquer pessoa.
Cada conto distorce a mais linear noção de amor, tornando-a num caso singular, a merecer estudo redobrado para que se desvende uma outra versão da sempre díspar relação humana com os sentimentos.
Com Schlink, a história da Alemanha para que muitos não querem olhar não anda muito longe, claro, e sobretudo nos dois contos que abrem o volume essa história está muito clara.
A verdade do passado que ressurge com a obtenção do quadro em A Menina e a Lagartixa e as obscuras relações que se estabeleciam entre os dois lados do Muro em A Infidelidade são o motivo pelo qual as personagens tombam para os erros que o Amor envolve.
Nos restantes contos, no entanto, esses erros são próprios da condição humana, nem sempre consciente ou voluntária como fica patente em A Mulher da Bomba de Gasolina, quando o homem desiste da vida que leva por ter finalmente vislumbrado a mulher que o leva a dizer “Tu és a Mulher da Minha Vida, Ela é a Mulher dos Meus Sonhos” (e roubo, com a devida vénia, o título ao brilhante livro de banda desenhada de Pedro Brito e João Fazenda).
Cada conto de amor é um conto de um certo falhanço. Mas o que seria da vida sem alguns erros?


















O Outro Homem e outras histórias (Bernhard Schlink)
Edições Asa
2ª edição - Setembro de 2009
224 páginas

sexta-feira, 12 de março de 2010

Vidas em órbita

Marilyn e Miller capturados pela lente de Eve Arnold

Ainda que as duas figuras em que se centra este livro me sejam caras pela sua ligação a essa arte que tanto amo, o Cinema, uma biografia sobre um casamento não me parecia o mais interessante dos temas para uma leitura que fosse capaz de me cativar.
No entanto rapidamente este casamente se revela como o núcleo em torno do qual orbitam muitas vidas.
Desde logo, a vida de Norma Jeane e Arthur Miller; de John Kennedy, Elia Kazaan e Frank Sinatra por acréscimo; e inevitavelmente a vida de Hollywood de meados do século XX ou das comissões do Congresso para investigação das actividades anti-americanas.
Ao contrário do que sugere a foto, onde se revela de forma muito acentuada a estranheza que parecia constituir a união do casal, os dois nunca estiveram sozinhos, isolados do mundo como poderia ter sido a única solução para viverem placidamente aquilo que chegou a ser amor.
A maior estrela era também a mais frágil rapariga do seu tempo. Exigia atenção constante e fazia-se seguir de um séquito de amigos, amantes e aproveitadores que nunca conseguiriam fazê-la aprovar-se a si mesma.
Ele amava-a acima de tudo mas precisa da sua solidão de escritor. Rendeu-se a ela por devoção mas ela precisava antes que ele a tomasse com ferocidade. Ele deu-lhe o melhor do seu talento como prova de amor e ela não o compreendeu.
Dois feitios diametralmente opostos que na sua junção atraíram cada vez mais pessoas a um casamento cujas relações externas minavam a essência de cada um deles que, por sua vez, minavam a relação que tinham assumido.
Este casamento foi, por definição, uma tragédia em que nenhuma das partes era culpada mas em que ambas as partes eram motivadora desse desfecho.
Este casamento é o motivo certo para uma biografia que aborda uma extensa rede de relações que tornam o leitor ávido de poder ter a seu lado toda uma biblioteca de biografias para se poder desviar pelas vidas secundárias antes de voltar ao núcleo deste livro.
Verdade seja dita que, por vezes, é irritante para o leitor ler informação que é, afinal, repetida, mas com um trabalho tão extenso de pesquisa e composição cronológica é justo notar que o resultado proporciona um excelente ritmo de leitura e que a macro-construção do livro, encaminhando os relatos sobre cada um dos "protagonistas" em direcção a uma interesecção e à sua posterior ruptura, é perspicaz.
E de aquilo que seria quase um ponto nestas vidas nasceu uma biografia esclarecedora e desafiadora que, no entanto, não apaga a admiração que se sente por este núcleo e pelas vidas que o orbitam.





















O Génio e a Deusa (Jeffrey Meyers)
Bizâncio
1ª edição - Novembro de 2009
368 páginas

domingo, 7 de março de 2010

Aguardado

Para os leitores, um dos benefícios de uma adaptação cinematográfica é o retorno da atenção sobre o respectivo livro.
Foi este o caso, depois de 4 anos de espera para ler o livro, a aproximação do filme permitiu-me encontrar uma pessoa que se sentiu pressionada a comprar o livro.
Li-o agora emprestado depois de tanto tempo a adiar a compra. Ou seria a adiar a resposta a uma dúvida profunda de um leitor para com um livro que o tenta apesar de tudo?
A concepção de um romance contado a partir do ponto de vista de uma rapariga assassinada poderia ser uma curiosa forma de policial.
Ao começar a ler a ideia de policial ficou rapidamente posta de lado para se explorar o efeito de uma perda brutal tem sobre o grupo de pessoas que têm de continuar a viver para lá dela.
Só que esse olhar sobre a devastação das vidas dos familiares de Susie Salmon não tem sobre o leitor o mesmo efeito que a morte teve sobre eles.
Parece-me que falta ao narrador do livro um crescimento que lhe permita um olhar mais crítico - e até mais cínico - para com os resultados que a sua morte teve na sua família e dos restantes membros da comunidade que com ela interagiam.
A morte da personagem cristalizou-a numa idade feita de esperança e magia, quando na verdade a sua mera morte parece ter destruído tudo isso em todos.
Que o romance vá olhando para o que se passa na Terra a partir de um belo Céu individual é menos interessante do que mergulhar a fundo na tragédia humana dos que ficam para viver a história, já que para a contar serve bem quem morreu.
As doses de uma fantasia gerada pela fé que vão trabalhando para a concepção do romance sobre um acto de violência pura que tudo destroi tornam-no menos poderoso do que podia ser, mas talvez - e talvez porque pessoalmente não me deparei com isto - mais repleto de uma esperança apaziguadora para o leitor.


















Visto do Céu (Alice Sebold)
Casa das Letras
10ª edição - Novembro de 2009
264 páginas

quinta-feira, 4 de março de 2010

Escapar

Uma mulher acorda ao lado de um cadáver que não se lembra de ter assassinado, mas começa logo a fugir.
É o mesmo género de culpa que aflige todos aqueles que, apesar de terem a consciência tranquila, instintivamente se amedontram quando a polícia lhes bate à porta.
Então ela foge da forma como se aprende a fugir na ficção. Levanta o dinheiro que tem, viaja pelas cidades pequenas e desconhecidas, não deixa rasto.
Mas não se liberta logo do seu estilo de vida, vê-se obrigada a ir perdendo-o à medida que as peripécias a afligem cada vez mais.
Há um ponto em que deixa de haver retorno possível. Tem de continuar em fuga, porque a fuga se tornou a única coisa que tem sua.
Sem dinheiro nem casa, continua em fuga até ao limite. Até que finalmente retorna à sua velha vida.
Só que nessa altura tudo se demorona, a fuga perde a razão de ter começado.
Então certamente que a fuga é a fuga por mérito próprio, uma fuga de que a personagem central necessitava acima de tudo.
Se umas pessoas tiram uma sabática, outras precisam deste resvalar para o vazio.
Cada um foge da estranheza e da pressão da vida comum como pode.




















Um ano
(Jean Echenoz)
Terramar
1ª edição - Maio de 2000
100 páginas

terça-feira, 2 de março de 2010

Deuses caídos

Os deuses do Olimpo deixaram-se cair numa casa decrépita de Londres e vivem no meio da imundice, esquecidos por todos, sobrevivendo de expedientes ridículos e por isso cada vez mais em confronto uns com os outros.
Assim, confinados a uma casa e a uma existência cada vez menos relevante, entram em conflitos e manipulações mútuas, sobretudo quando Eros intervem com as paixões de Apolo para com uma mortal dedicada à limpeza.
Conflitos e manipulações mútuas que levam o humor de Errar é Divino fica mais perto da sitcom do que do tom negro que a decadência destes deuses sugere no olhar sobre a decadência do mundo.
Uma sitcom bastante divertida por muito tempo, extremada pelas personalidades destes deuses que sempre tiveram tiveram os maiores defeitos dos humanos sobre os quais regiam e que se vêm trancados em conjunto num espaço exíguo e desproporcional aos seus egos.
Mais do que o humor, sobressai o interessante do livro vem no aproveitamento dos antigos mitos num espaço moderno.
A imaginação da autora tem momentos de grande interesse em que consegue actualizar a mitologia, do qual substituir a balsa de Caronte por um metropolitano é apenas um pequeno exemplo.
Infelizmente ela encaminha a resolução para uma ideia mais do que gasta, a de que a decadência dos deuses é culpa da falta de fé humana.
Quando essa volta, eles retomam as suas anteriores forças. E nesse processo, ganham uma notoriedade de estrelas da cultura popular, um pormenor que fecha o livro e que tinha sido interessante de ver mais desenvolvido, pois parece que até os deuses só têm direito aos seus 15 minutos de fama - que para eles duram uns milénios - o que levava a que a uma interessante pergunta sobre a indiferença que até os responsáveis por apagar o Sol sofrem.


















Errar é divino (Marie Phillips)
Editorial Presença
1ª edição - Novembro de 2009
284 páginas