segunda-feira, 17 de julho de 2017

Grandeza do que é ridículo




Creio que não haja quem não saiba como Álvaro de Campos se manifestou sobre as cartas de amor e, mais importante, sobre "as criaturas que nunca escreveram" uma dessas.
Com As Grandes Cartas de Amor, título que devia deixar cair o "As" para não soar tão definitivo, aprende-se a como criar esse ridículo.
Lendo esta selecção descobre-se como a personalidade de cada um dá origem à expressão do seu amor, manifestando-se no que escreve ou na forma como o escreve.
Karl Marx surpreende elevando o amor por Jenny von Westphalen, filha de um barão, acima do amor ao proletariado como a forma de amor que permite ao homem sê-lo integralmente.
Benjamin Franklin, como bom diplomata, estabelece um tratado de paz com Anne-Louise d'Hardancourt Brillon de Jouy, território alheio mas com quem queria relacionar-se de forma mais explícita do que ela permitia.
Nos casos mais peculiares está a descobrir-se a verdadeira personalidade de quem escreve, incapaz de esconder o seu mundo interior perante a força do amor.
Os casos de dois escritores são interessantes nesse aspecto pois mostram como as suas identidades estão muito próximas das dos personagens que criaram.
O amor não correspondido de Charlotte Brontë leva a que a sua carta mostre os traços de romantismo melodramático de Jane Eyre e mesmo o seu desespero não a impede de se esforçar literariamente em detalhes que já antecipam o naturalismo de que faria uso.
Antoine de Saint-Exupéry teve um pouco mais de sorte com o seu amor, mesmo se a carta que dele lemos é de ruptura. Nela ele continua a exprimir-se com a ternura poética do seu grande sucesso mas, mais do que isso, mostra-se como sendo ele próprio O Principezinho, entretanto derrotado pela falha da sua amada.
Cada leitor terá uma diferente escolha de cartas a individualizar. Por estar familiarizado com o autor ou destinatário; por ser surpreendido pela força de tal carta...
A leitura integral leva a um convívio com a intimidade alheia - em grande parte de pessoas dignas de nota - que obriga a interrogar a própria.
Erguem-se dúvidas sobre que comportamentos se assumiriam - ou se assumiram já, quem sabe - em situações semelhantes. Como se erige a admiração pela coragem expressa em cada carta.
Isso vem do facto do livro se dedicar a cartas individuais, sem procurar as que lhes deram resposta ou contextualizar em detalhe o desprezo a que possam ter sido votadas.
Impressas isoladamente, mesmo aquelas cartas escritas no seio de uma relação estável, tornam-se acto individual de coragem assim descobertas.
Um dos intervenientes revela o que lhe vai no coração sem saber se a resposta estará à altura do que expressou ou, sequer, se haverá uma resposta.
Não se trata apenas de ver como o protagonista da história de amor expôr o que sente, tem de se enquadrar isso com a espera que vem no seu seguimento.
Nestas cartas vê-se um mundo que vai desaparecendo, não tanto estarmos perante uma forma de arte cada vez mais rara num Tempo em que a expressão escrita é breve e directa.
Mais provavelmente por já não haver quem saiba lidar com as formas do amor aqui expresso, sejam o sereno ou o proibido.
Abafado por tantos outros pólos de atenção ou transformado em algo de expressão menos poderosa, o Amor tal como existia nestas cartas parece desaparecido.
Por isso o deleite com uma selecção como esta e, apesar de tudo, trazendo a pequena esperança de que em cem anos haja uma outra selecção de cartas de Amor que traga textos deste século XXI, como as duas cartas ao Amor Eterno com que Rita Ferro e Fernando Correia fecham o livro.


As Grandes Cartas de Amor (Elizabete Agostinho - selecção e coordenação)
Guerra & Paz
1ª edição - Janeiro de 2016
208 páginas

Sem comentários:

Enviar um comentário