quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Perfeito quando é humano

Por falar em regressos, no extremo oposto do de Hitler, temos Jesus Cristo. As mensagens de cada um podem colidir mas o método que eles encontram para a divulgar é a mesma: projecção televisiva.
O Jesus de Niven faz-se entertainer, tal como o Hitler de Vermes. Em vez de passar por um comediante com ascendente político candidata-se a um daqueles concursos para descobrir o melhor cantor da América.
Foi a oportunidade que encontrou para cumprir a sua missão depois do seu pai, ao regressar de umas breves férias (uma semana no Céu, dois milénios na Terra), o reenviar à Terra.
O plano é, com as diferenças naturais de tantos anos de distância, sensivelmente o mesmo que havia da primeira vez: transmitir o seu único e verdadeiro mandamento, "Sejam simpáticos".
Ao que parece Moisés achava que um mandamento era pouco e tratou de aperfeiçoar a coisa...
A partir da sua inconformidade para com as regras do programa, Jesus torna-se numa estrela rebelde capaz de transmitir a sua mensagem.
Através das acções. Em vez de capitalizar a sua fama, ele trata de usar o adiantamento do dinheiro de um disco para criar uma comuna terrena capaz de imitar o céu: as armas são proibidas, a energia é "verde", todos são admitidos e a erva flui livremente.
Isso será a ruína que levará a uma nova condenação à morte, confundido com um chefe-de-culto-e-terrorista.
A crítica aos males da Humanidade feita a partir desta história não deixa de ser pertinente - quem dera que o pudesse ser - mas também não vem acrescentar nada de novo.
Esse não é o interesse do romance, nem mesmo o é o humor que o autor lhe imprime e que é uma das poucas constantes de um livro muito oscilante em tom e qualidade.
John Niven consegue despertar verdadeiro envolvimento com o livro no momento em que descrever as deambulações de um Jesus profundamente humano.
Uma espécie de hippie consciencioso e determinado, capaz dos sacrifícios mais simples aos mais tenebrosos.
Essa parte do livro é cativante e quase imaculada, conseguindo criar uma personagem com a qual queremos conviver longamente.
Com esta personagem, que ao sair de casa deixa o seu pouco dinheiro aos amigos para eles tomarem o pequeno-almoço ou que ao ser preso cede a ser sodomizado para evitar a violência no interior da cela sobrelotada, John Niven pode ter conseguido criar um texto que concretiza aquilo a que este Jesus vem.
Este Jesus é capaz de nos persuadir do prazer de ser Bom pela forte sensação de alegria que nos transmite.
O talento de Niven é muito e está todo presente aí, como também o está nas passagens em que descreve as sensações que a música tocada pelo seu personagem causa nos outros. Verdadeira música sem ser preciso utilizar a audição.
Niven tem um domínio das palavras carregadas de emoção que tem de ser descrito como genial, sem qualquer hesitação.
Pudesse ser todo o livro assim e estaria apenas a enumerar elogios mas esse pedaço de brilhantismo está emparedado entre componentes bem menos interessantes.
Antes vem aquela descrição humorada mas não profundamente original dos meandos do Céu e, sobretudo, do Inferno. O choque pelo exagero não deixa de fazer rir, mas não mais do que, por exemplo, a representação do Inferno em South Park: Bigger Longer & Uncut.
Depois vem a descrição da América Profunda amedontrada em jeito de aviso catastrofista. É uma solução quase óbvia para a trama e não faz mais do que repisar uma certa paranóia já gritada em muitos media.
Em termos de radicalismo do humor tinha ficado muito mais interessado em que Niven explorasse as contradições que Jesus vem apontar aos que mexeram nos números dos textos Bíblicos inventando milagres onde havia pão e peixe suficiente para as apenas cinquenta pessoas que seguiam Jesus.
Algo que poderia ter feito para cumprir com a sua intenção de integrar o seu livro na tradição da melhor comédia acerca da religião.
Parece a marca de uma certa arrogância fazer uma referência a Life of Brian logo no início do livro, como parece pouco mais que pilhagem concluí-lo com uma reformulação da frase de Lenny Bruce acerca do que os crentes usariam ao pescoço no caso de Jesus ter sido morto num dos estados americanos que ainda aplicam a pena de morte, apenas colocando uma seringa no lugar da cadeira eléctrica!


A segunda vinda de Cristo (John Niven)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Julho de 2013
448 páginas

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