domingo, 19 de janeiro de 2014

Ler com água na boca

Esta é uma introdução à Gastronomia que deve ser saboreada. Os seus textos breves devem ser degustados com moderação e não consumidos em catadupa, para melhor se poder registar os muitos dados excepcionais que os pratos revelam.
Aliás, o ideal seria ter a hipótese de, a cada história lida, ir provar o prato num local onde este fosse tratado
com a mesma dedicação e preparado com o mesmo conhecimento que Fortunato da Câmara coloca na revelação das suas origens.
Como não é possível fazê-lo, temos de nos contentar com a acção que as palavras são capazes de ter sobre as papilas gustativas, despertando memórias de antigas refeições ou criando a imaginação de refeições que estão por vir.
A proeza do autor é dedicar tanta atenção aos pratos quanto às suas possibilidades literárias, ou seja, de explorar pratos que se notam ser do seu agrado, mas sempre contendo passados que lhes permitam conquistar um leitor que possa não ter desejos antecipados por eles.
Pode dizer-se que há histórias para figurar em todos os géneros - e, logo, para convencer qualquer tipo de leitor.
Das dúvidas que permanecem em torno do verdadeiro criador ou do ponto de origem de um prato - como convém a qualquer obra de arte - ao toque de humor crítico que se pode encontrar no visionarismo do Abade de Priscos em utilizar palha num dos seus repastos.
Neste livro há disputas pelo direito de chamar "O original" a um prato, revelações bisbilhoteiras de tempos mais ousados, reivindicações de patos entre estratos sociais, várias ousadias - e mais acidentes - a passarem a mito, realidades que provam que as nossas preconcepções são absurdas e homenagens extraordinárias a verdadeiras divas.
Um pouco de tudo o que a realidade tem de extraordinário e de absurdo, como é próprio tanto do quotidiano como da Arte, dois domínios a que as refeições pertencem simultaneamente.
Mesmo que o leitor não creia que o relato de um determinado prato lhe interessa, assim que inicia a leitura rende-se à inevitável assimilação de uma outra realidade humana que se banalizou - o Croquete - ou tornou raro - Pêssego Melba -; que se degenerou - Bifes stroganov - ou se apurou - Fondue.
A Gastronomia surge como um mapa das Eras, do que foi e que não pode voltar a ser, do que teve de se transformar para ceder às condições actuais e até mesmo do que se perdeu por não se antecipar o futuro - exemplar o caso do Abade de Priscos que muito bem dá título ao livro e o encerra com uma última extraordinária história de sucesso culinário e derrota memorialista.
Sendo filho de um gastrónomo que sempre guardou uma prateleira para os livros de e sobre a Cozinha, sinto ter falhado ao demorar tanto tempo a render-me aos prazeres da boa literatura da boa mesa.
Ou talvez o que fizesse falta há mais tempo fosse esta maneira sedutora de entrar no domínio escrito daquilo que dá prazer provar, ou seja, através de relatos que valorizam os mistérios, os logros e os duelos que ainda vivem em torno de cada prato.
Uma introdução mais emocionante para um tema que exige estudo - não só o que é feito em direcção ao estômago - como a bibliografia deste livro prova.
A documentação do autor é notável, como é notável que ele resuma o muito que teve de conhecer em crónicas tão pequenas mas tão plenas, sempre com uma prosa expedita. 
Um livro apetitoso, que vale a pena ser lido em voz alta em partilha como se de uma refeição em comum se tratasse! É esse o grau de encanto que esta selecção de pratos tem.


Os Mistérios do Abade de Priscos (Fortunato da Câmara)
A Esfera dos Livros
1ª edição - Abril de 2013
328 páginas

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