quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Mais perto

Muito embora o tema do livro de Ana Zanatti esteja um pouco para lá do que eu consideraria a minha zona de conforto enquanto leitor, devo reconhecer que ela criou uma situação ideal às suas intenções.
Nesta espécie de "Corações-Partidos Anónimos" (que, de anónimos, nada têm), a autora faz um retrato global dos muitos descasos e infortúnios que as pessoas causam a si mesmas e aos outros em nome do Amor.
E do que a sociedade ora vende como conceito ora exige como modelo do que seja esse Amor.
Para concretizar isso, Ana Zanatti cria uma dinâmica de grupo muito interessante cuja função primordial é permitir que cada personagem tenha sempre a sua personalidade colocada em questão a cada nova revelação.
As mais inesperadas reacções surgem dos personagens que já pareciam ter preenchido um modelo social dominante e identificável.
Revelações que poderiam soar a falso ou a lugar-comum ficcional funcionam exactamente porque ainda conseguem gerar surpresa.
Até porque o grupo, em que todas as personagens se colocam num mesmo grau de revelação de falhanço pessoal a partir do momento em que estão presentes, faz mais do que permitir a revelação dos personagens: transforma-os.
O grupo cria um ambiente protector, de falsa intimidade, que faz com que as personagens baixem as suas defesas por saberem que não se reencontrarão depois do fim daquela noite.
Mas leva também a falsidades - melhoramentos próprios quase inócuos, na verdade - em nome da impressão imediata que ali cada um dá de si mesmo.
Assim, nenhuma personagem se torna num estereótipo e é no conjunto que elas revelam imagens completas em que cada leitor - se assim o entender - consegue recompôr um retrato de si mesmo.
Um retrato que se faz sobretudo de atitudes e escolhas e não de experiências amorosas específicas.
Toda esta dinâmica de grupo vale-se, acima de tudo, da voz própria que Ana Zanatti consegue criar para cada personagem.
As suas personalidades distinguem-se e funcionam activando umas nas outras reacções cénicas inspiradas.
Os diálogos são a mais-valia desta pequena obra, dado que eles são a própria "acção" e a dinâmica em construção da história.
Creio que a experiência da escritora como actriz não será alheia a esse controlo dos personagens por via dos seus diálogos.
O que neles ela faz é conseguir um equilíbrio dramático do qual extrai um humor saudável e desopilante - do risco da telenovelização existente quando tanto se fala de Amor num livro só - que quase parece ter surgido naturalmente em vez de ser trabalhado por quem escreve.
Humor que só falha na cena final, curiosamente a única cena passada nos momentos em que o grupo já se desfez.
Aí Ana Zanatti parece ter forçado uma situação de coincidência - dentro do próprio grupo, mas também de algo mais abrangente a que chamarei Destino - para um efeito final de revolta brusca - e femininista, sem qualquer tipo de visão negativa do termo - que contraria o efeito do que veio antes.
Dentro do grupo as personagens libertaram-se numa transição pacífica por via do diálogo, aceitando-se e à sua situação porque os outros as aceitam primeiro.
Estamos um passo mais perto da "Grande Ficção" cuja busca assumimos - editora e leitores - com estas edições.
Boa parte do prazer está em acompanhar esse processo para lá se chegar e confessar que, pelo tamanho das propostas, há autores (neste caso, e até agora, autoras) que acedemos a ler em jeito de descoberta.


E onde é que está o amor? (Ana Zanatti)
Guerra & Paz
1ª edição - Maio de 2013
368 páginas

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