domingo, 19 de fevereiro de 2012

A dignidade da submissão

Os limites da condição amorosa, tanto masculina como feminina, podem ser definidos, inesperadamente, na história de um bancário que se reforma e da sua traidora mulher.
Por mais que os papéis que desempenham pareçam evidentes, as ambiguidades de ambos são fontes de extraordinárias descobertas da forma como cada um tolera as mais ferozes situações em que o compromisso do casamento os coloca.
A resistência dele vem ao de cima quando a traição dela é vivida mais abertamente. A dignidade dela vem ao de cima quando a dele está a esgotar-se.
Claro que, na maior parte do tempo, o leitor achará que ele é um velho e entristecido frouxo e que ela é uma maníaca insensível e detestável.
Mas em momentos diferentes, para lá de qualquer obrigação que o casamento imponha, ambos revelarão o amor que têm dentro de si e que tiveram de esconder do mundo por motivos que só a dureza deste explica.
Ele resistirá a todas as traições para que lhe seja concedido o privilégio de observar o ritual de limpeza em que ela se dedicava ao corpo mais do que qualquer amante. Esse ritual representa uma entrega pessoal excepcional, muito superior à do sexo.
Com isso ela recompensa o homem que compreende que as necessidades físicas da sua mulher estão para lá da sua capacidade de lhes responder, não porque ele seja insuficiente como amante, mas porque ela é insaciável.
Ela só revelará o grau do seu compromisso sentimental quando ele estiver demasiado doente para se valer a si mesmo. Em vez de contratar uma enfermeira é ela que responde a todas as necessidades do marido.
A partir daí deixa de sair da beira do marido e acaba mesmo por perder a compostura que mantinha atentamente com o seu ritual.
Só então percebemos que esta mulher guardava ainda amor ao seu marido e que, muito provavelmente, a cedência que fazia para que ele presenciasse o ritual era a única forma que encontrava para expressar esse sentimento porque sabia que, por via do sexo, tudo o que tentasse expressar pareceria insuficiente.
Só falta entender, pois, o tal fato cinzento. O fato que ela usou na primeira vez que viu o seu marido e o fato que usa na última vez em que ele a conseguirá ver a ela. O fato que é o de pré e pós-luto, aquele que lhe dá uma dignidade e que contém (sem disfarçar) a sua feminilidade.
O fato serve de teste para ela encontrar homens que respeitem o seu momento de perda, que não se ofereçam para a consolar quando o corpo do marido ainda mal arrefeceu.
Sim, porque este é o segundo marido de Adele mas não será o último. E por mais que ela o tenha amado, ela não poderá viver sozinha ou deixar de satisfazer os prazeres do corpo.
Ela tem de encontrar um homem sério e decente para lhe entregar o seu respeito e, depois, o seu amor. Mesmo se também o acabará por trair por imperativos biológicos.
"Cornos" e lágrimas são os elementos essenciais desta história que se ergue pelo talento de um escritor que tem a inteligência de saber que toda a grande literatura precisa de histórias que são fonte inesgotável de boatos e maus romances. Mas que servem também a que um bom escritor as use para olhar a psicologia humana em alguns dos seus momentos mais reles e, por isso, extraordinários.


O Fato Cinzento (Andrea Camilleri)
Bertrand Editora
Sem indicação da edição - Abril de 2009
128 páginas

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