sábado, 28 de maio de 2016

O fardo da imaginação

Yann Martel continua a ser um homem cheio de imaginação. O problema, como com A Vida de Pi, é que lhe falta a inspiração e a transpiração para moldar as suas ideias na forma de boa ficção.
De tal maneira ele tem imaginação que desta vez ele concebe três histórias que em 1904, 1938 e 1980 (e pouco) vão dar a Tuizelo, uma aldeia em Trás-os-Montes.
Essa região é que constituiu as tais Altas Montanhas de Portugal, sendo que lá para meio do livro é dito que essa é uma denominação que lhe deram, se para afastar interessados ou para a publicitar de forma falaciosa, não se sabe.
Não importa, esse é mais um elemento da imaginação do autor, que ele usa como forma de elevar ao "maravilhoso" a base realista que cria com a qualidade da sua pesquisa.
Pelo menos crê-se que assim seja, pois não há vontade de verificar a realidade de conduzir um Renault no início do século passado ou a exactidão do percurso que Tomás faz por Lisboa.
O que deve interessar realmente é que em 1904 Tomás que caminha às arrecuas vai atravessar Portugal ao volante de um carro, máquina que desconhece por completo. Que em 1938 Eusébio ouve uma descrição de como Agatha Christie é a versão moderna dos Evangelistas antes de realizar uma autópsia cheia de impossibilidades. Que pelos anos 1980 Peter vai, por impulso, viver com um chimpanzé com quem avista o último dos rinocerontes-ibéricos.
Ainda assim estes são eventos superficiais, pois não podemos esquecer que Martel está à procura de significados profundos para a Fé e o Amor.
O que deve interessar ainda mais é que pelos anos de 1980 o chimpanzé de Peter se assume como mais um elemento da vida da aldeia e é o único que consegue encontrar o mítico rinoceronte. Que em 1938 Eusébio descobre que o corpo humano, como a história de uma vida, é composto por muito - mas muito! - mais do que orgãos. Que em 1904 Tomás persegue uma extrapolação miraculosa que fez a partir do diário de um padre e da sua referência a um crucifixo que trouxe de África.
Esta trindade de homens que perderam as esposas está numa espécie de viagem em contínuo que os leva de "sem casa" a "em casa", reconciliando-se com Deus, que se deverá concluir ser o esquivo rinoceronte.
Tal como os macacos que vão atravessando a narrativa devem ser as verdadeiras formas dos anjos dos quais ascendemos à nossa condição, pelo que Tuizelo deve ser um qualquer Éden onde homens e macacos podem conviver pacificamente e comungarem com o divino.
Haverá quem veja nestes elementos motivo para assombro. Seriam se o autor fosse além de uma tentativa tosca de dar sentido à salganhada.
Na verdade esta conclusão é apenas uma das muitas que se podem tirar do livro pois o verdadeiro resultado é um vazio de sentido.
Martel tentará fazer crer que está a depositar a responsabilidade nas mãos do leitor, mas na verdade está a ser preguiçoso com as decisões que tinha de tomar para os seus personagens e o seu estado de permanência no universo que criou.
Tal como está a ser preguiçoso quando se permite qualquer excesso incoerente com a etiqueta de realismo mágico, a que o autor não pertence.
Pois se falamos da sua "rica" imaginação, aponte-se aquilo que ela disfarça: a pobreza da sua escrita.
Há uma suposta procura de requinte escrito que resulta em metáforas pavorosas, seja porque se tornaram ridículas ou porque perderam o seu sentido. Basta transcrever um parágrafo para demonstrar ambos os casos.
O amor é uma casa na qual a canalização nos traz novas emoções gorgolejantes todas as manhãs e os esgotos descarregam as nossas disputas e as janelas claras se abrem para deixar entrar o ar fresco da boa vontade renovada. O amor é uma casa com fundações inabaláveis e um telhado indestrutível. Ele teve uma casa assim em tempos, até que foi demolida.
Más metáforas são, ainda assim, mais desculpáveis do que a absurda abertura do livro onde inúmeros nomes de ruas de Lisboa são citados. Além de proporcionar sonoridades exóticas,  a geografia inútil só serve para maçar, mesmo aqueles que não conheçam a Língua Portuguesa.
Até mesmo nisto se vê a indecisão de Martel, pois se todo o livro é uma parábola, que evitasse as exaustivas descrições dos problemas que o Renault dá ao longo do caminho.
Yann Martel não sabia qual dos livros escrever e escreveu os três. Agregou melhor a primeira e segunda parte, deixando para a terceira (e menos má) um remate mal conseguido. O todo é, aqui, menor do que a soma das suas fracas partes.
Para um livro que durante dois terços quer fazer crer que a escrita e a sua interpretação podem refazer a ligação entre o Homem e Deus, não há pior do que falhar ele próprio em qualquer solidez literária.
A única indecisão de que Martel não sofre é aquela que o condena, pois continua a perseguir reflexões sobre a influência da religião (da crença, será mais justo) nas pessoas confrontadas com a morte.
Até mais especificamente, sobre a aceitação da ficcionalização como elemento preponderante da experiência espiritual de cada um.
Um objectivo que se projecta como ainda mais pretencioso do que é perante a falta de qualidade do trabalho que o sustenta.
Ficasse ele pela simplicidade - com as histórias trabalhadas como contos cómicos - e seria a sua imaginação digna de alguns elogios.


As Altas Montanhas de Portugal (Yann Martel)
Editorial Presença
1ª edição - Abril de 2015
320 páginas

1 comentário:

  1. Na História de Pi, o homem ainda moldou o que lhe vinha da imaginação com alguma inspiração e 3 gotinhas de transpiração. Mas desde aí, nunca mais nada valeu a pena - embora, em tudo, se encontrem bons achados e passagens interessantes, não é?

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