segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Da dissonância

A crítica a Até que o Mar Acalme sairá sempre fora do âmbito mais habitual da crítica literária, por levar em consideração a música que o acompanha e o distinge.
Não é o âmbito deste blogue fazer crítica musical e, portanto, tal não acontecerá. Apenas uma tentativa de avaliar o romance pela sua concretização em dois patamares artísticos.
Até porque uma crítica musical revelaria desde logo a incompatibilidade para com o estilo baladeiro enjoativo do autor que, mesmo assim, ouvi atentamente ao longo do livro.
Começando por falar exclusivamente do livro escrito, é um romance no sentido mais típico que a palavra hoje tem e que impeça que seja usada para toda a literatura.
Não é tanto pelas suas histórias de amor (em sentido lato) que o escrevo, mas pela sua dependência excessiva da serendipidade encaminhada para um final feliz apesar de alguns pontos de infelicidade.
Um conjunto muito limitado de personagens passam a vida em encontros e desencontros por si mesmos ou por intermédio dos seus parceiros.
Os casais - nem sempre amorosos - vão variando ao longo do livro, com o homem e a mulher dos casais que no final permanecem a terem fugido de infortúnios anteriores com aquela mulher e aquele homem que entretanto constituíram um outro casal.
Isto de permeio com uma porção de realismo extremo em que o desemprego coloca o protagonista na via de ser sustentado pela prostituição da mulher sem conseguir lidar com isso, enquanto outro personagem vê o seu casamento desfazer-se porque vive na expectativa de encontrar algo "mais" que só tarde demais perceberá que tinha em casa.
Este cruzar constante dos personagens tem sempre um estilo muito variado, indo do romântico em exagero ao divertimento provocatório.
Os capítulos dedicados aos diálogos entre dois amigos, homens, são os melhores com o autor a fazer uso de uma coloquialidade cheia de à vontade entre ambos. O reconhecimento da forma de intimidade por via de alguma dose de parvoíce acontece e consegue momentos divertidos.
Já os capítulos dedicados aos encontros românticos tornam muito evidente a origem de escritor de letras para canções do autor, com um abuso do lirismo sem efeitos práticos. O estilo de pensamento romântico, verbalizado ou não, está para lá da própria personalidade das personagens, não se distinguindo de umas para outras e não estando de acordo com a sua existência até aí.
Estamos muito mais perto de entender os capítulos como partes - canções? - individualizadas unidas pela retoma de personagens e não pela coerência da voz ou do estilo.
Nesse aspecto tenho, pelo menos, de reconhecer que este romance musical não é um artifício, é uma tentativa do seu autor de trabalhar a ideia de narrativa que se espraia pelos tempos vazios entre canções.
O problema é que as verdadeiras canções que ele escreveu estão quase em desacordo total com as "canções" que são cada capítulo.
Um desacordo de apreço, pois as canções que funcionam melhor são as de tema romântico que, pela sua brevidade e porque não estamos obrigados a crer que há poesia na pop, fazem melhor serviço do que os capítulos pouco interessantes a que correspondem.
Sobretudo, um desacordo de expressão. As letras e o próprio tom das canções chegam a contradizer o ambiente que o capítulo tentou expressar.
Não é necessário ir mais longe do que o primeiro capítulo que descreve uma cena de um homem à beira (literal) do suicídio e termina com o cliffhanger da dúvida sobre se ele o concretizará.
A música associada a esse capítulo (e que está no final do mesmo, o que é a forma mais habitual de surgirem associados) tem uma melodia animada e versos como Para um novo futuro/Que eu possa chamar meu.
A canção contradiz e elimina a tensão que o capítulo tentou criar, dizendo-nos que este personagem certamente continuará vivo por um qualquer milagre de último segundo (confirma-se!).
Lembramo-nos de um formato narrativo do cinema norte-americano mais mainstream que a noção de banda sonora pop só reforça.
A ideia interessante - ou não me teria disposto a ler o livro - teria de ter alguém mais capaz para a concretizar. Alguém que fosse tanto escritor como músico, experimentado em ambos os campos e capaz de trabalhar ambas as vertentes numa separação dialogante.
Miguel Gizzas fica-se apenas pela separação entre escrita e música.


Até que o Mar Acalme (Miguel Gizzas)
Gradiva
1ª edição - Setembro de 2014
292 páginas

Sem comentários:

Enviar um comentário