domingo, 20 de julho de 2014

E o papel do leitor?

Tenho uma relação difícil com José Luís Peixoto, daquelas relações que estão por criar. Depois de Morreste-me nunca mais o li, afastado por uma certa sensação de aplauso constante que o fabrica como figura de marketing literário cuja confirmação pode não acontecer.
Livro confirma-me que estou em dívida (comigo mesmo) por não ler mais regularmente o escritor, pois a sua escrita atinge picos de uma assombrosa beleza.
Livro confirma-me, ao mesmo tempo, que os receios têm algum fundamento e que terá de ser com cuidado que voltarei a ler José Luís Peixoto.
Da beleza dá-nos conta a forma como constrói uma realidade alargada a partir de um conjunto reduzido de personagens vivendo um conjunto disperso de episódios.
Essas personagens representam realidades grupais mas acima de tudo traçam-se a si mesmas numa complexidade que tem tanto de realismo como de literário e que proporciona a compreensão de uma realidade a par de um maravilhamento de imaginação.
Os episódios em que vão existindo são pequenas maravilhas contidas em si mesmas, micro universos literários que merecem uma atenção isolada para si mas que vão fazendo a caracterização de dois países (Portugal e França) e da realidade que os une ainda (a emigração).
Há um fascínio nas ideias que José Luís Peixoto revela, acontecimentos que nos parecem só poder terem nascido da imaginação mas que vão demonstrando que podem ser assomos de realidade trabalhada.
Sobretudo porque esses episódios estão ligados e nessa deambulação entre Portugal e França começa a encontrar-se um fio condutor de uma narrativa maior que é destes personagens e dos homens e mulheres que viveram essa mesma deambulação.
Só que à realidade adiciona José Luís Peixoto o amor literário que é seu, dos leitores e, entretanto, dessas personagens que criou.
Essa relação com os livros adiciona uma camada de impossibilidade e magia ao sofrimento que ele descreve, numa hipótese de salvação que só pertence à esperança de quem revê em histórias a História, adicionando-lhe "acasos felizes".
A ambição que José Luís Peixoto cola às páginas é a de uma elevação que a literacia, a Literatura e o livro concedem às personagens - logo, às pessoas.
Como aquele jogo de palavras sublinhadas num livro, mensagens codificadas, bilhetes de amor, conversa facilitada pelo interface de um livro. Como se as capas do mesmo protegessem aquelas pessoas e fizessem perdurar os seus sentimentos.
Tudo isto é magnífico e nele se vai vendo a promessa do que o autor enceta numa segunda parte do seu livro, um exercício de concretização literária (e gráfica) do que ele escrevera antes.
Algo para lá da metalinguagem, algo a caminho da metarealidade - que seria interessante saber se acontece igualmente nos seus livros de não ficção.
O problema é que este exercício de experimentalismo acontece em ruptura e não em integração. Fosse todo o livro um misto de espanto literário e 
Nada tenho contra o experimentalismo. Apenas neste caso esse experimentalismo surge como acrescento. Um acrescento em busca de sentidos maiores para esta execução literária.
A busca de um passo adiante na modernidade dos livros que funciona mal dentro do objecto por não estar integrada na sua totalidade.
O leitor fica com a dúvida sobre que livro está a ler. É possível reconciliar ambas as partes de Livro - estão, afinal, a rementer de uma para outra; narrativa infinita embora não necessariamente numa forma cíclica - mas não é possível acreditar que sejam ambas partes do mesmo livro.
Há um livro passado de mão em mão entre personagens e que é, no final, passado para a mão do leitor. Está, portanto, o autor a passar ao leitor o livro pela mão das suas criações.
Sendo isso uma verdade permanente dos livros, esta explicitação do processo quer ser construtiva de uma relação mais intensa do leitor com os livros, mas parece autofágica.
Falando de si mesmo - também por via do autor elencar as suas referências (quase exibindo-se) - o livro está a roubar ao leitor parte do seu papel. Um papel que este é chamado a executar na primeira parte do livro e que deveria ter sido chamado a executar com maestria se o "jogo" da segunda parte existisse com a devida imposição na primeira parte da escrita.
Por isso o papel do leitor perante este livro está manco, tal como o livro está manco com uma das suas partes desequilibrada contra a outra.
Na minha opinião é a segunda em relação à primeira parte, para outros leitores será a primeira parte em relação à segunda (embora este caso pareça mais difícil). Impossível é ficar satisfeito sem se ter recebido um desafio - um livro, o Livro - devidamente equilibrado.


Livro (José Luís Peixoto)
Quetzal
3ª edição - Outubro de 2010
264 páginas

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