segunda-feira, 4 de junho de 2018

Pés cravados no impossível




Possidónio Cachapa revê a realidade pelos olhos das possibilidades. O impossível que está logo após a fronteira do real.
O impossível que pode ser apenas o escapismo com que um personagem lê a sua realidade, para se apaziguar.
Os traços de esperança para um mundo que tem bastante negrume. Um mundo que é bem português: espera-se que cada vez menos mas duvida-se.
Um mundo feito da realidade do isolamento, da pequenez do horizonte e do esquecimento da distância.
Uma aldeia numa ilha, logo isolada primeiro por terra e depois por mar. Mais recôndita não poderia ser e, por isso, o local onde algo mítico pode acontecer sem que ninguém venha a sabê-lo.
Ao mesmo tempo o local de onde tantos querem partir para encontrar a chance da vida ao invés da expectativa dos milagres ou das maldições.
Assim vagueia a história, entre os que ficam agarrados àquele espaço - uns vivos, outros mortos, todos almas rejeitadas - e os que partem com a mente ali regressando.
A estrutura do próprio livro segue esse deambular, ele próprio por vezes afastando-se por histórias contadas pelos seus personagens.
Histórias que soam a fantasia, mesmo quando podem ser reais. Histórias distantas das quais a realidade de Kika regressa permeada.
Daí que o misticismo da história desta menina seja aquilo que prende os personagens à dureza primordial do amor e do ódio.
De como um e outro se geram e se alimentam, numa dicotomia que é embate e comunhão simultânea.
Esta duplicidade constante é a essência do que é o livro, falando da carne e do espírito, do escapismo e do inevitável.
Tudo tão me resumido nessa forma que o destino tem de traçar o caminho, fazendo nascer uma menina milagreira de uma mulher "duvidosa" e cujo pai partiu em busca de algo mais - por certo menos do que ela lhe mostraria.
O único que admira todos estes - e os demais, secundários que não desprezados - personagens é o autor.
A todos trata devidamente atribuindo-lhes, inclusivé, formas de falar que os tornam reais, distinguíveis, marcantes...
Os diálogos são assinaláveis pelos atalhos que encontram para darem dimensão às vozes e identidade aos espaços.
Possidónio Cahapa escreve buscando a melodia para as suas frases. Sem deixar de primar pela eficácia - que tanto reduz o tamanho do romance.
Uma prosa a sentir-se poesia. Livre mas sem excessos. Em busca da frase perfeita, que seja exacta no sentido e no som.
Esse é o desafio maior de toda a escrita. Nem sempre o escritor o alcança. A própria busca consegue tornar a escrita duradoura no ouvido da memória.



Viagem ao Coração dos Pássaros (Possidónio Cachapa)
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1ª edição - Janeiro de 2015
176 páginas

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