segunda-feira, 18 de junho de 2018

Obra com identidade




A Segunda Guerra Mundial será, para sempre, contado como um dos eventos mais destruídores. Até do próprio contínuo da História.
Disso fala este romance, da perda de pátria, de contactos, de amigos, de família, da memória e da própria identidade.
Não é um tema novo mas está longe de estar esgotado. Sobretudo no feminino - embora o livro traga logo à memória o magnífico filme de Christian Petzold, Phoenix.
A forma como Ronaldo Wrobel trata o tema é, no entanto, única. E ambiciosa pelas camadas temáticas que ele une naquilo que, no seu íntimo, é uma investigação que um neto faz em nome da avó.
As muitas perdas de que o livro fala não começam nem terminam com o domínio Nazi da Alemanha.
Parte-se do Brasil actual onde uma idosa está a sofrer de Alzheimer e chega-se à Alemanha dos anos 1930.
Há uma herança recém-descoberta que liga os dois momentos e que vai levar à reconstituição do tempo que fez de Sofia Stern uma Alemã no Brasil sem pátria a que voltar.
O trabalho do neto começa num diário, escrito nas duas Línguas, fragmentário, cheio de apontamentos que só fazem sentido para quem guarda(va) o código da sua decifração na memória.
A partir desse início desenlaçam-se múltiplas versões daquela digna matriarca de família, que afinal está mais confortável cantando entre prostitutas do que sentada na poltrona de casa sob cuidado da família.
A identidade está em causa por todas as cisões que se notam, muito antes de Sofia ter tido de se transformar em cantora de cabaret - e algo mais do que isso...
Uma identidade que, desde logo, ora depende ora choca com a da amiga Klara a cada novo período das suas vidas.
Começa pela escola, onde de uma bela rapariga que faz amizade com outra pouco abonada passa a ser desprezada pelas colegas e, depois, impedida de estudar.
Está nos estratagemas de sobrevivência e nos subterfúgios de fuga ao destino dos judeus, que afectam e proporcionam relações afectivas ou interferem com a vontade de resistir a quem ocupa o poder.
A identidade cristalizada que o Brasil lhe permitiu construir está a desfazer-se na mesma medida em que a identidade original está a ser refeita.
O processo de pesquisa é a confirmação de que só o registo estudado das memórias pode trazer um entendimento total daquele período definidor.
Esse jogo é de tal ordem que extravasa do livro, com o autor a usá-lo para desafiar o leitor. Pois se ele é Ronaldo Wrobel, o narrador é Ronaldo W.
Jogo metaliterário que reforça o facto da herança, valiosíssima, não ser importante para Wrobel senão como matéria para interessar o leitor.
Ronaldo Wrobel aproveita-a para levar o leitor a entreter a noção de que está a ler um policial, seguindo bem definidos passos de investigação.
Num estilo que é o do page turner, diversos capítulos deixando em suspenso o que se vai passar, assegurando entretenimento na imersão que se vai sofrendo nas questões de identidade.
Com ela está a criar opositores para lutarem contra o trabalho do narrador, demonstrando que não há facilidade na busca - reconquista? - da identidade.
Até porque o resultado da investigação não é surpresa nenhuma, único desfecho possível para o complexo labirinto pelo qual o autor vai conduzindo o leitor com precisão e afinco.
Estas são ferramentas igualmente importantes para a fluidez da narração. Uma de tal tamanho que permite ao autor rechear o texto de informação de nicho - como seja a moda alemão e a sua crítica durante o período nazi - sem que ela se mostre como tal.
A matéria de reflexão do autor é transmitida como parte do desenvolvimento das identidades dos personagens e adensa o entendimento mútuo da época.
Infelizmente para o leitor português tudo isto está servido por um editor diligente com um mau critério.
Um editor que tentando explicitar o significado de alguns vocábulos brasileiros, trata dos óbvios e falha nos pertinentes.
Os termos bilhetes lotéricos, panfletagem ou detenta não são apenas fáceis de entender. Estão bem servidos pelos parágrafos em que se inserem para que o leitor português os entenda.
Já os inferninhos a que um personagem se deslocava são algo que não atravessa o Atlântico com a mesma facilidade.
Até porque a palavra tem uso para mais do que um tipo de estabelecimento. Não tem é nota de rodapé que lhe corresponda!
Uma pena que, em simultâneo, o editor não tenha confiado nos leitores a seu cargo e lhes tenha proporcionado um mau apoio.


As duas vidas de Sofia Stern (Ronaldo Wrobel)
Porto Editora
1ª edição - Setembro de 2017
264 páginas

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