segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A matéria dos vampiros

De novo vampiros, mas desta vez a abordagem tal como ele deve ser, em que o mito é o romance e não uma componente dele.
O livro debruça-se sobre o mito dos vampiros para se arriscar a reinventá-lo, fazendo da espécie mais uma à superfície da Terra e sob o jugo de um deus criador.
Estes vampiros são criaturas colocadas em espera durante muito tempo, que aprenderam a viver em aceitação da espécie humana, sujeitando-se a permanecer discretos e humilhados.
O seu poder é uma ferramenta que servirá a decisão de deus em apagar a sua criação que deveria comandar o mundo mas que o encaminha para o ponto de insustentabilidade.
Estes são vampiros liderados pelo Marquês de Pombal e para os quais o próprio Drácula é somente uma figura tutelar.
Mais do que figura de poder símbólico, Drácula é o primeiro deles mantido vivo e, como tal, aquele que ainda mantém a ligação aos desígnios que deus tem para eles.
A assinatura de Drácula é requisito para que os vampiros cheguem a falar com deus, mas o político português lidera as negociações.
Esta é uma forma dos vampiros que está entre o mito e a realidade, entre o extraordinário e a decepção. A força do mito original domada e sujeita a negociatas com a vontade de um ser criador que viu o poder destes seus filhos e se amedrontou do que com ele poderiam alcançar.
A força maior deste livro é a de reinventar o mito do vampiro e, ao mesmo tempo, elaborar uma reflexão cujos contornos simbólicos permitem uma vasta gama de conclusões acerca da existência humana: Drácula pode ser o erudito cuja descendência (intelectual) durará por décadas até que conquiste o mundo; ou a sociedade dos vampiros é uma classe que espera silenciosa pelo momento da revolução.
A leitura metafórica do poder será das mais fortes, a um tempo política e a outro tempo do definitivo carácter humano, de que os vampiros são a raça que espera e se humilha para arrebatar o governo da Terra.
Sejam um grupo (políticos?) à espera do momento em que os humanos falham ou uma personalidade humana à espera que a moralidade se esfume, são o lado negro da vida humana e da geral ignorância com que se lida com a consciência da realidade.
Se o Drácula permanece como um contínuo de vida modelada e fiel a um deus, os seus discípulos fazem a vez de ardentes revoltosos: injustiçados mas à beira de perderem o domínio de si mesmos.
O livro é breve, mas foi trabalhado durante quase uma década, ficando por "polir" devido à morte de Furio Jesi.
Mesmo assim é um livro de enorme força, uma surpresa exigente que não satisfará leitores expectantes de mordidelas e estacas, mas que levará a que se aprofundem as noções que se tem das mitologias de todo o mundo antes de serem afectadas pelo cristianismo.
Estão lá as figuras dessas outras cosmogonias invocadas pelo nome, na reunião das muitas famílias de vampiros, pelo que para perceber plenamente este pequeno volume e a sua radical inovação, há que a ele voltar com esse estudo feito.
Mesmo que leve uma vida inteira, há que fazê-lo em nome de uma iluminação e uma independência que evite que nos tornemos os vampiros aqui descritos e elevemos a condição humana.


A Última Noite (Furio Jesi)
Publicações Dom Quixote
Sem indicação da edição - 1988
148 páginas

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