domingo, 27 de fevereiro de 2011

Lendo o mote do blogue

Já mais do que uma vez li provas de que um pequeno texto pode conter a grandeza de um mundo ou de um espaço devotado à imaginação completiva do leitor.
Ou, como neste caso, de ambos.
A Raposa Azul preenche-se com a dicotomia do Mundo que só se une verdadeiramente na Arte.
Expõe a realidade por oposição à sua construção de um conto de fadas. Deixa que a crueldade humana venha ao de cima nos mesmos lugares que lhes dão a visão do maravilhoso. Eleva o poder da decisão individual mesmo que ao mesmo tempo veja a vingança da Natureza acontecer sem oposição possível.
Veja-se que se trata de um conto histórico que fala de um tema que só costuma ter repercussões em romances situados na actualidade, o Síndrome de Down. Mas torna-o num aspecto de emergente milagre.
A magia de uma linguagem, de um rosto e de uma origem que são únicos e que, mesmo explicados, não eliminam por completo a possibilidade da rapariga que sofre desde nascença seja filha de maravilhas desconhecidas aos básicos sentidos humanos.
Não se trata de um livro do Fantástico, mas de um livro que insufla o real de possibilidades. Que dá espaço para se continuar a renegar as explicações para abraçar as hipóteses.
Até porque há dureza no interior deste mundo mas sempre tocada por uma beleza de linguagem admirável.
Linguagem essa que tem poesia dentro - acredito que a tradução merece destaque, mesmo que não seja perfeitamente fiel ao original (arriscaria dizer que a tradutora não conhecerá Islandês), pois tem o poder linguístico que fascina na nossa própria Língua - sem deixar de ser objectiva para com a história. Assim, é a própria escrita que faz o texto suplantar a realidade que se lê.
Falei no início de um espaço para a imaginação, espaço que reforça tudo o que disse até agora.
O livro, não só por ser breve, mas por na sua brevidade estar repleto de parágrafos isolados, descontinuações temporais e mudanças de vozes, tem muito a dar ao leitor que quer reflectir e construir a sua própria intimidade com o livro e não tem necessidade que lhe sirvam a exposição completa de tudo o que a história guarda no seu interior.
(Só não se entenda com isto que a forma se sobrepõe ao restante.)
Julgo que encontrei aqui, não só um belíssimo livro, mas um dos livros que melhor incorpora o mote que, já há um pouco mais de dois anos, escolhi para este blogue.


















A Raposa Azul (Sjón)
Cavalo de Ferro
1ª edição - Fevereiro de 2010
112 páginas

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Do noir e do thriller

Craig Russell conseguiu o que muitos autores têm tentado mas raramente conseguido.
Refiro-me a reinventar o noir mantendo o foco essencial na personagem central e criando repercussões maiores relativas ao mundo como o conhecemos hoje.
Ou seja, em vez de criar mais um thriller rebuscado e de conclusões discutíveis, Craig Russell criou um noir de traços clássicos que toca temas de fundo actuais.
Parte tudo da construção de uma personagem feroz e inesquecível, vagabundeando na fronteira dúbia onde o carácter e a lealdade tendem a ganhar mais importância à medida que as escolhas genéricas de Bem e Mal deixam de ser possíveis.
Com esta criação ficam garatidos os leitores, interessados numa personagem que se destaca da página e ganha forma, vida e se torna num ídolo.
A sua voz enquanto narrador revela bem o grau profundo das interrogações que lhe queimam a alma no pós-guerra.
Homem atormentado mas muito inteligente, capaz de se vender mas protector da relíquia que é a sua integridade num mundo que se libertou de restrições depois da Guerra.
A sua existência não tem mais pureza e, no entanto, não é possível censurá-lo pelas suas decisões.
Lennox é o desejo secreto do que gostaríamos de ter sido noutra vida e noutro lugar, com o mesmo grau de dureza emergente e vulnerabilidade escondida.
Como outros grandes personagens do mundo do crime, de um lado e do outro da arma (mais do que da Lei), são os heróis de gente que deixou de ver o mundo a preto e branco.
Craig Russell traça o mais rigoroso ambiente do género que Dashiell Hammett e Raymond Chandler tornaram em grande literatura, porque soube igualmente escolher um cenário idílico para as suas personagens.
Uma Glasgow cinzenta, carregada de smog, nada convidativa. Russell só lhe reforça a atmosfera com a sua qualidade de escrita.
Uma cidade que aprendeu a aproveitar-se do homem para não ver os actos violentos que o próprio homem irá cometer no seu coração. O negro do carvão criando uma cegueira intransponível para o negro da alma humana.
Neste ambiente, na década que se seguiu à II Guerra Mundial, Russell pode colher o melhor do mundo que estava prestes a desaparecer arrancado das mãos dos gangsters que se tornavam ilustres. E pode partir em busca dos temas que definiram o mundo no restante do século XX.
O ponto de viragem, tanto temporal como físico, em que se transita do que foi para o que será, mas onde ainda demorará a esgotar-se a necessidade de um homem como Lennox.
O noir assim é melhor do que alguma vez será o thriller. Simplesmente porque depende da escrita e não do truque, da personagem e dos ambientes e não da inesperada reviravolta que está sempre em risco de ser descoberta.


















Lennox (Craig Russell)
Guerra & Paz
1ª edição - Novembro de 2010
344 páginas

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Mistério essencial

Mais do que uma mulher do século XX, Tina Modotti foi a personificação do século XX.
Ela não só atravessou mas fez sempre parte dos retratos que melhor estruturam a primeira metade daquele século.
Ela nunca se limitou a ser mais uma na multidão incaracterística. Quase sempre encarnou extremos decisivos da História, até mesmo quando eram inconciliáveis entre eles.
Foi emigrante em dificuldades e anfitriã artística admirada.
Foi estrela de Hollywood e militante ortodoxa do Comunismo Russo.
Foi amante libertina e importante activista de uma organização solidária.
Foi uma sensível artista e uma feroz espiã.
Foi, ao mesmo tempo de tudo isto, mulher e, como tantas outras na sua época, sofredora. Por adorar crianças sem poder ter filhos ou por viver tantos amores para acabar sozinha.
O desapontamento pessoal foi sempre forte e andou a par do desapontamento das convicções, já que ninguém pode viver sem ceder a compromissos num mundo com tantas zonas cinzentas.
Qual dos desapontamento foi mais forte não saberemos aqui, nem em qualquer outra obra.
Àngel de la Calle dedicou-lhe uma obra que a homenageia por ser como ela própria foi, riquíssima mas fugidia.
Com tanto de biografia como de demanda pessoal por respostas acerca de Modotti, o livro é tão elucidativo quanto enigmático.
Sem dúvida que a pesquisa e o filtro crítico do autor são exactos mas é ele próprio a confessar que depois de tudo isso a sua personagem permanece fugaz em relação à mulher real.
A sua obra, pelo contrário, é riquíssima e harmoniosa com o que foi Tina.
O livro está repleto de referência visuais à arte de Modotti e de outros nomes que definiram a primeira metade do século XX.
Até mesmo a forma narrativa bebe de muitas fontes sem medo de referenciar o Expressionismo Alemão a par com os comics.
Modotti, a mulher, e Modotti, o livro, são ambos fontes de informação e fontes de mistério. O segundo deve lançar-nos na busca mais profunda da primeira, uma figura pouco nomeada mas essencial a um dos mais férteis (e conturbados) períodos da História Contemporânea.


















Modotti – Uma Mulher do Século XX (Àngel de la Calle)
Conrad Editora
1ª edição - 2005
272 páginas

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Personagem de escritor

Sou seguidor relativamente ávido da série Californication, pelo que a hipótese de ler a famosa obra ficcional dentro da ficção me pareceu natural de seguir. Até porque David Duchovny tem dado vida à sua personagem com enorme talento e poder de atracção.
Ficção dentro de ficção a tornar-se realidade. Não é o primeiro caso mas é um bem conseguido.
Sobretudo, é uma forma de fazer encontrar dois meios de criação distintos e, quem sabe, se não é mesmo uma forma inteligente de tornar espectadores em leitores.
Mas deixo essa reflexão para outro momento e falo, por agora, apenas do livro.
Este Hank Moody, escritor, é logo à partida uma personagem e, como tal, tem a sorte de poder ser constituído por traços de personalidade bem escolhidos e ricos.
A escrita desta personagem combina a verve pop de Nick Hornby, a fragilidade mascarada de misoginia de Charles Bukowski e o talento impúdico de Hunter S. Thompson.
A combinação não terá a relevância dos restantes, dos escritores reais, mas é um gozo de leitura.
Divertido tanto quanto é dramático. É como a própria série e, no entanto, não precisa dela para justificar a sua leitura.
Claro que o livro será apreciado melhor por quem conhece a série que tem aqui uma concretização do tão anunciado romance de sucesso da personagem que segue há várias temporadas.
Lê-se como uma história de origem da personagem que depois se refinou na série e a leitura benificia mesmo de se saber o que vem depois.
Agora bem pode vir o Fucking and Punching que eu não me importarei de continuar a ler a ficção tornada realidade.


















Deus não gosta de nós (Hank Moody)
Marcador
1ª edição - Novembro de 2010
196 páginas

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Descobrir o Vampiro

Muitos anos antes de Bram Stoker se tornar no autor sinónimo de Vampiro, outros criadores exploravam já os mitos da sua região.
Exploravam-nos em textos ricos que se preenchiam com muito mais do que o terror.
Muitos são os elementos que entram nestas histórias, seja o romance ou o humor, todos eles contribuem para construir textos que não se classificam e que, sem vampiros, poderiam ser lúcidos retratos de época.
Se há algo que podemos ler nestes dois textos é a repercussão social que tem o vampiro.
Os alertas do folclore permanecem nestas criações literárias. Contra a soberba ou a arrogância, por exemplo. Mas também, como foram muitos dos contos recolhidos pelos Grimm, avisos contra a libertinagem sexual.
Em parte são actualizados para censurar os pecados sociais que surgiam na época, como os rumores criados sem fundamento.
Aqui, verdadeiramente, a fantasia e o horror misturam a realidade e a imaginação de forma a servirem propósitos de sermão e sátira social.
A crítica da exploração do estatuto e da família com vista a objectivos de poder é violenta porque é feita a partir da cobrança de sangue.
Será, por isso, discutível até que ponto estamos verdadeiramente a lidar com textos de terror, embora algumas passagens sejam ainda magníficas nos calafrios que criam.
Dos dois texto é em A Família do Vampiro que as bases do mito são mais desenvolvidas e em que o género é mais evidente, tanto ao nível estrutural que recupera a tradição oral ao colocar um homem a relatar o seu encontro com vampiros, como ao nível exploratório do terror mais chocante.
Já em O Vampiro há mais dados sobre os muitos outros caminhos que o mito poderia ter seguido, entre eles o poder alucionatório do vampiro, por vezes mais perto de um fantasma do que as figuras que conhecemos hoje.
São textos que se lêem com apreço e que nos elucidam muito eficazmente sobre o que era o vampiro antes de ficar, em definitivo, estabelecido na cultura popular.


















O Vampiro e A Família do Vampiro (Aleksei K. Tolstói)
Arbor Litterae
1ª edição - Setembro de 2010
200 páginas

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Nada supérfulo

Só quando está prestes a morrer decide este homem escrever o diário do que foi a sua vida.
Tem duas semanas para viver e trinta anos para contar. A tarefa parece mais difícil do que é, mesmo que nem pensemos nos anos da infância que pouco deverão contribuir para o volume do caderno.
Parece mais difícil pois este é o homem que afirma que a sua vida foi inútil por inteira e, portanto, deverá ter pouco para contar.
O que ele afirma é, exactamente, que só tem a contar que foi supérfulo toda a vida e dá um exemplo com que quer provar isso mesmo.
O exemplo? Uma história de amor em que ele não poderá ter sido bem sucedido. Afinal, está a morrer sozinho, entre censuras da velha enfermeira.
A dolorosa história de amor ou, se preferirem, o melodrama de salão de baile de província, decorre em torno dele sem que ele consiga descobrir qualquer papel determinante para si próprio.
E ainda assim é essa história que lhe ocupa as duas semanas, a vida reduzida àquela única lembrança.
Porque o amor é o mais importante da vida e porque, inconcretizável, leva o autor do diário a contrariá-lo e à prevalência que tem sobre os trinta anos em que se manteve ausente.
Logo aí, de tanto escrever para provar que foi, de facto, supérfulo - ele próprio e o amor - deixa-nos uma lição de como encarar a realidade e de como lidar com o amor.
Assim, escrevendo, ele contraria a sua própria tese, legando um texto de importância aos que estão para chegar a esse momento amoroso e, inocentes e tolos, cair no mesmo erro de esgotar o essencial da vida logo ali.
Ainda que não se concorde que este relato é uma lição, o texto que é o da sua vida, faz-se ler com ardor do início ao fim.
O prazer do texto que ele cria, da história romântica contada com a mestria que distingue a Literatura do romance de cordel, tem já direito a deixá-lo reconhecido como homem algo mais do que supérfulo.
Como o seu amor que revive nos últimos catorze dias dos seus trinta anos.
Claro que o protagonista é apenas uma personagem, a sua existência supérfula apenas fruto de imaginação e considerações teóricas que o tomam por real para melhor servir a sua abordagem.
Por oposição, Ivan Turguéniev foi bem real e é um magnífico escritor e de quem este pequeno texto é tão belo como qualquer outro maior e mais importante.
O seu talento facilita que se veja vida real no texto e incentiva que se viva o livro sem barreiras racionais.
Magnificamente traduzido e editado, um livro que não será essencial mas que é apreciável e nada, mesmo nada, supérfulo!


















Diário de um homem supérfulo (Ivan Turguéniev)
Arbor Litterae
1ª edição - Julho de 2010
120 páginas

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Talvez agora

Tenho cá por casa A Conspiração dos Antepassados e O Evangelho do Enforcado ainda por serem lidos mas sempre a fazerem pulsar em mim o interesse. E a dúvida.
Conheço com apreço e admiração retornados a cada leitura a obra que o autor ergueu no domínio da banda desenhada mas logo da primeira vez que experimentei a sua prosa, com Os Ossos do Arco-Íris, senti um forte desapontamento.
Com o primeiro conto deste livro senti que estava condenado ao mesmo destino, a continuar a refugiar-me na banda desenhada para apreciar o trabalho de David Soares.
As palavras exploradas com afinco mas também redundância, buscando um efeito que não o de clara progressão narrativa mas de mera erudição - em parte sonora, pois os textos merecem sempre uma segunda leitura, já em voz alta - desprotegiam as ideias de A Sombra sem Ninguém que se revelavam menos originais do que o talento do autor fazia crer.
Logo depois, refutando tudo o que o primeiro conto me fizera dizer acerca dele, A Luz Miserável e Rei Assobio são dois pedaços brilhantes de escrita.
Ambos versam sobre o peso da memória que resta e ambos arrancam à triste humanidade a possibilidade do Fantástico seja pelo peso do medo ou da esperança.
São contos com um cenário que diria ser identificável no nosso espaço geográfico mas com os traços indefeníveis (e universais) dos locais que ficam fisicamente abandonados e espiritualmente entregues. Onde o real cedeu ao extraordinário.
O medo é aqui talhado para ter uma capa mundana, plausível como relato de vidas antigas e cujas contrariedades parecem cada vez menos reprodutíveis num mundo moderno.
Ainda assim o medo subsiste, porque a capa pode cair e dar lugar a outra mais pessoal, capaz de nos tocar mais profundamente. Uma nova capa que será, assim o creio, a nossa própria pele, a nossa própria vida.
Com estes dois contos sinto que fica provado que tenho andado a adiar duas leituras essenciais - a bem dizer três, que tenho a promessa do empréstimo de Lisboa Triunfante assim o queira.
Talvez seja este o momento de deixar o interesse comandar sobre a dúvida.


















A Luz Miserável (David Soares)
Saída de Emergência
1ª edição - Novembro de 2010
128 páginas

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Criança, mulher, vingadora

Indomável é a adjectivação que merece uma rapariga de 14 anos que afronta dois dos homens mais duros.
Ela desafia-os porque os acompanha, mantém-se a seu lado, equivale-lhes em quase tudo.
Um é um velho rezingão de tiro fácil e gosto pela bebida que passou por muitas vidas antes de chegar a marshall.
Outro é um garboso e arrogante ranger com uma folha brilhante na caça ao homem.
Nenhum dos dois tem disposição para ver que a sua resistência e a sua determinação encontram rival nessa miúda que mal sabe carregar uma arma.
Ela não é apenas uma rapariga de 14 anos, é uma rapariga de 14 anos cujo maior desafio até aí tinha sido uma caça ao guaxinim e que ao ficar orfã de pai assume os seus negócios de improviso, com uma personalidade que, provavelmente, não sabia que tinha dentro de si.
Dois marmanjos a terem de conceder que a miúda os vence porque não desiste de os acompanhar a cada passo e que, por vezes, até tem mais iniciativa do que eles não é um espectáculo esperado ou bem aceite.
A mulher não é aqui apenas a narradora da sua infância. É a personagem central de um Oeste violento e impiedoso que a deveria amedontrar ou remeter ao seu papel na lida da casa, mas que a leva a liderar uma vingança contra um assassino de bárbaro carácter.
Diria que é libertador encontrar esta inversão de papéis num western mas não há nenhuma intenção educativa sobre o poder de emancipação da Mulher em épocas que não lhe pertenciam.
Charles Portis escreveu uma aventura brilhante narrada e conduzida por uma inesquecível personagem, dando-lhe uma postura extraordinária numa voz verosímil.
O tema central sobre a confusão da justiça com a vingança, bem como o tema secundário da união de vontades para um mesmo objectivo apesar da separação de motivações, não poderiam ser mais Americanos, sem esquecer ainda o género do livro perfeitamente tradicional.
Tão pouco tempo depois de ver os Estados Unidos da América à procura de mais um great american novel em Freedom, tendo a concordar com Ron Rosenbaum em como Charles Portis é um dos melhores romancistas americanos de que ninguém ouviu falar. Não sei se será por ser um western ou por ser construído com base numa certa ideia de inocência feminina em perda que nunca ninguém lhe deu a atenção devida.
Ou então porque além de ser bem escrito e de reler um tema conhecido de forma absolutamente original, é um livro pleno de humor e cuja leitura proporciona um tempo repleto de soberbos detalhes que se agarram à memória mas também divertido.
Divertido mesmo. Tão divertido que nenhum leitor negará que queria mais páginas para este livro onde se desvendassem outras aventuras desta mulher que cita muitas vezes a Bíblia a meio do seu relato de um acto de vingança pouco cristão.


















True Grit - Indomável (Rudyard Kipling)
Editorial Presença
1ª edição - Janeiro de 2011
184 páginas

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Fantasia, não fantástico

A história que dá título a este livro pareceu-me uma forma fantasiosa de reflectir sobre a inspiração que preenche o autor de uma ideia e, ao mesmo tempo, mostrar que a literatura não é um mester para qualquer um.
Duas figuras separadas por inspiração e capacidade. Uma que muito se esforça mas pouco consegue. A outra que muito consegue sem que saibamos de qualquer esforço.
O que não tem talento terá uma fantástica história para contar, mas apenas o outro saberá como a aproveitar.
Mas se o talento é dado a uma pessoa, a inspiração é dada a outra. Cada um deve usar o dom que lhe calhou da maneira que sabe e sujeitar-se a viver com o infortúnio de nunca poder ter tudo para si e atingir a plenitude.
No final, aquele que tinha a mais bela história a contar esqueceu-a em troca do primeiro amor.
O outro, que tinha o talento, guardava o seu sucesso como escritor e o lamento de nunca conseguir contar a história que todos deviam conhecer.
A pergunta é, pois, o que vale mais, se a substância de uma história ou o talento de artesão para a esculpir.
Embora eu creia, também, que Kipling afirma que um escritor saberá sempre que a perfeição se esfuma, que da imaginação à palavra vai um abismo, e que nem por isso deve deixar de escrever.
Esta história fala de tudo isto - ou julgo eu que fala - através do recurso à inconsciência das vidas passadas que invadem um corpo para se fazerem anunciar ao mundo.
A que se lhe segue, Através das Ondas, versa sobre a inspiração igualmente, mas fazendo valer a ideia de que a ciência no momento da sua descoberta, ainda inexplicada, pode equivaler a magia.
O efeito real da ciência confunde-se com a crença no paranormal, novamente ambas sendo fonte de inspiração.
A história parece redundante ao lado de A História Mais Bela do Mundo e a ideia, talvez original no seu tempo, parece agora datada e mal explorada.
No fundo diria que são exercícios de Fantasia de Kipling o que aqui lemos, não sem objectivos educativos e um claramente melhor que o outro.
Arrisco dizer que são curiosidades a conhecer mas não boas histórias de um escritor que ganhou o Nobel mas continua a ser lembrado como o mero pai de Mogli.


















A Mais Bela História do Mundo (Rudyard Kipling)
Europa-América
Sem indicação da edição - Setembro de 2010
110 páginas

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Histórias de toda a gente

Estas não são histórias daqui e dali mas histórias de todo o mundo.
Ainda que situadas em grande parte na América Latina ou, ocasionalmente, na Europa, são histórias que se destacam dos seus locais de origem para se sediarem nas emoções dos seus protagonistas.
Através dessas, estas histórias tornam-se universais. Em todas elas reconhecemos amigos ou familiares que guardam a mesma imagem para nós que aqueles que Sepúlveda convocam guardam para ele.
São relatos nossos, como são dele. Sabemo-los como lembranças no diário, conversas com amigos ou recordações relatadas aos netos.
São formas expressivas de deixar assente a importância das emoções de momentos mais ou menos importantes no traço geral da existência, mas muito significativos na vida de quem conta.
Nessa configuração de entendimento destas histórias, a escrita de Sepúlveda assenta de forma perfeita.
A sua expressão é solta, animada, liberta, ritmada e sentida.
Nestes relatos curtos sentimo-la em força, sustentando toda a memória, não caminhando para um clímax mas elevando o prazer do início ao fim.
A emoção e forma de a expressar são, de facto, os traços mais importantes de um contador de histórias para que as possa tornar, realmente, em histórias de todos os que o ouvem.
Porque, de facto, lendo estas páginas, o livro soa-nos aos ouvidos como da boca de quem o sentiu.


















Histórias daqui e dali (Luis Sepúlveda)
Porto Editora
1ª edição - Novembro de 2010
160 páginas

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

A natureza do desastre

Blues por New Orleans está bem perto da versão impiedosa do noir que James Ellroy tem vindo a escrever.
O glamour das profissões que se colam à fronteira entre as duas faces do crime substituídas pela verdade brutal do comportamento humano.
Na mistura de polícias, detectives privados, mafiosos, criminosos de ocasião e preconceituosos armados não se está a construir um policial mas um retrato do que a natureza humana tem de mais vil.
Violência, indiferença, ódio, retribuição, desprezo e perversão. Fica tudo à mostra nas acções que atravessam os destroços e que levam os personagens de encontro uns aos outros, de encontro a um destino violento mas pouco trágico perante aquilo que mostraram de si mesmos.
Não se pense, no entanto, que é o furacão que dizimou a cidade em 2005 que promove a descoberta deste lado dos habitantes de Nova Orleães.
O furacão Katrina foi a forma que a Natureza encontrou para se colocar em sintonia com o mais terrível que a Humanidade tem a mostrar.
Se a natureza humana é capaz de ser tão sórdida e obscura, então a Natureza tem, ela própria, de se expressar da mesma forma para provar ao Homem que ele, apesar de tudo, não domina o mundo com esses seus traços abjectos.
A beleza de Nova Orleães apagou-se no gritos do caos que ficou depois da Natureza por lá passar e abrir sulcos para onde se podem lançar os corpos que estavam a atrapalhar a continuada expressão da natureza que os Homens ainda vão encobrindo.


















Blues por New Orleans (James Lee Burke)
Editorial Estampa
1ª edição - Dezembro de 2009
368 páginas

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Pensamentos ecoando nos outros


Expressar o Belo e o Absurdo num único pensamento é o acerto mais profundo que a mente humana pode alcançar.
O homem - que não foi só um homem mas um pensador essencial e irrepetível - que encontrava o absurdo com sobriedade só se pode ter sentido elevado para lá dos que o rodeavam.
O homem disposto a pensar o mundo, para si só mas partilhando com quem passa não é soberbo, apenas um homem repleto que precisa de se expressar para continuar a pensar.
Jules Renard, o personagem, tem como único interlocutor um corvo, a quem ensina tudo o que cria com o entendimento. Como se estivesse a deixar ao mundo um agoiro que baterá à janela de quem não souber olhar de mote próprio o que ele disse e sobre o que o disse.
Mas a tudo o que regista no seu diário ele acrescenta o tom irónico - e, sem dúvida, divertido - de quem pode ser sever porque guardou um resto de encanto no meio do desgosto.
O desenho com que Fred "lê" o diário são estilizados, de tal forma que são simples mas cheios, plenos, fortes.
O desenho cria um mundo mágico que dá corpo aos pensamentos, que os abriga e os faz perdurar.
Trata-se de um toque de protecção e carinho, de entendimento e encorajamento de um artista para com as ideias de um outro.
Como eles ecoam melhor em nós quando são interpretados pelo talento de outro criador.


Imagens irresistivelmente retiradas deste blog.


















O Diário de Jules Renard lido por Fred (Fred)
Bertrand Editora
Sem indicação da edição - Outubro de 1989
140 páginas

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Por pedaços

O meu conselho viria sempre tarde pois quem comprou Um Pai de Filme certamente que não resistiu ao belo impulso que é comprar livros numa livraria que parece esperar por nós.
(Isso e, provavelmente, a capa catita a que voltarei numa outra ocasião.)
Esta é a história de uma personagem que se cruza com a História do Chile à medida que ela vai sendo feita, até se aproximar do momento em que desembocará na eleição de Salvador Allende.
A História é importante mas nunca será tão sedutora como a história. À que leva o H faltam-lhe as personagens únicas e sedutoras.
Pugilistas, crianças fascinadas pelas heroínas de cinema ou homens que se guardam a vida toda para conduzirem uma Indian são a alma de um Chile que haveria de sofrer muito mas que ainda não tinha consciência de como já se lutava para tirar algum prazer da vida em muitos lugarejos.
O sonho de partir para Nova Iorque é comum a todos os que permanecem porque nada parece mais extraordinário do que a grandeza do Empire State Building.
Transforma-se a pequena cidade do Chile numa versão possível da grande cidade dos EUA para se ir vivendo sem lembrar o declínio inevitável ao qual Madalena (a rapariga do título) é a figura mais condenada e inconformada.
Dito isto, o resumo de uma visão forte do que foi o Chile, não posso deixar de confessar que os livros de Skármeta (a pequena amostra a que tive acesso, entenda-se) têm belos momentos, blocos de texto que chegam mesmo a ser deliciosos.
Só que acabam por ser sempre melhor recordados por segmentos desgarrados do que como estruturas sólidas uníssonas da primeira à última sílaba.
Queria realmente ter gostado mais de ler Skármeta, entender o porquê de há alguns anos ter sido considerado o melhor escritor estrangeiro tanto em Portugal como em França. Não consegui, mas quem sabe se perante mais um empréstimo não acabo por voltar a tentar?

Uma questão importante a assinalar é a falta de revisão da tradução do livro.
O texto ficou pejado de frases mal construídas e de palavras intrometidas no sentido da leitura.
Não é incomum ao longo do livro ter de quebrar o ritmo de leitura para reler (mais do que uma vez) uma frase para conseguir arrancar-lhe à força o seu verdadeiro sentido.
Com a Teorema agora inserida num grande grupo editorial, não basta remodelar o design da capa e relançar a mesma tradução vários anos depois.
Espera-se, pelo menos, um cuidado apurado na reedição. Ou, mais ainda, espera-se uma segunda edição, acrescida de material que contextualize o livro, ou mesmo de textos complementares.
Por outro lado, isto só reforça o que escrevi no final do ano passado, que atirando às pessoas o mesmo livro, até aí ignorado, com uma (ligieramente) nova capa e elas tratam logo de o comprar...


















A Rapariga do Trombone (Antonio Skármeta)
Teorema
2ª edição - Setembro de 2010
312 páginas

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Delícia do leitor

As memórias não se alinham, não se orientam num friso cronológico, tropeçam umas nas outras, avançam aos repelões e voltam atrás como se nada fosse.
Esta é um livro de memórias assim, em episódios. Cada um uma pequena historieta que poderia ser guardada para uma noite no seio da família.
Memórias poéticas e preenchidas por poesia. Memórias plenas de vida e criação, de acção e poesia.
Não importa se são verdadeiras ou se são, mesmo que apenas em parte, criação. São belas, nada mais, e como tal importa apreciá-las.
Importa acompanhar este miúdo que pregava pregos numa tábua e saber onde chegou, saber como os episódios que viveu e quer recordar o tornam numa personagem inteira.
Seja essa personagem o próprio autor ou apenas uma projecção.
Como Manuel Alegre frisa no seu livro, os mistérios não se explicam. Preservam-se como prazer de voltar a ler um livro que não tem de ser uma descoberta sobre quem escreve.
Se isto é confissão ou criação, isso é uma decisão para o leitor. Uma questão que é a delícia do leitor, que pode percorrer o livro uma e outra vez buscando descobertas e entendimentos, sempre apreciando a bela escrita.


















O miúdo que pregava pregos numa tábua (Manuel Alegre)
Dom Quixote
1ª edição - Março de 2010
112 páginas