domingo, 30 de dezembro de 2012

Um investimento sem retorno

Com romances como este - sobretudo para quem, como eu, se afasta demasiadas vezes de material não ficcional - há sempre um fascínio pela descoberta de como lugares distantes eram em eras que parecem, de certa forma, mitificadas.
Neste caso a China no limiar do século XX, local de muitos e insondáveis mistérios para as mentes ocidentais do presente.
Desde logo a abordagem à medicina, feita com base numa representação do funcionamento do corpo humano como um todo interligado, que pode parecer um arcaísmo perante a ciência europeia da própria época mas antecipa as relações de causa e efeito entre os elementos mais díspares do corpo humano.
Como também o tratamento das causas prévias e subjacentes à maleita visível antecipam a ideia da psicanálise, por exemplo, demonstrando que a noção prática existente na Ásia era extraordinária faltando-lhe apenas um vocabulário objectivo ao gosto Europeu para ser melhor aceite.
A medicina é apenas um dos pormenores revelados de um país com uma cultura que é difícil de assimilar de imediato mas que exerce um fascínio tão grande como o espaço disponível no Palácio Imperial que acolhe diversas personalidades e outras tantas nacionalidades em jogos políticos intricados.
À medida que se acompanha o impaciente percurso do médico português, encontram-se cada vez mais detalhes, da realidade prosaica aos eventos exclusivos da China.
Embora algumas dessas descrições sejam emocionantes por si só, há um excesso de informação que vai engrossando o livro sem que depois este justifique a explanação de toda a pesquisa que Kunal Basu fez e da qual se depreende que tem muito orgulho.
Aceitar-se-ia melhor o débito de informações se estas acompanhassem uma imersão mais intensa e convincente do médico português nas possibilidades do país que o acolhe. Mas visto que ele rapidamente passa da arrogante relutância europeia perante a medicina oriental e da intensa obsessão com a cura da sífilis do seu pai para um concretizado desejo pela sua professora, torna-se numa personagem pouco interessante.
Com a sua perda de personalidade, o que fica a suportar a riqueza de detalhes é apenas uma história de como o cerebral europeu - que deixou uma noiva à espera - se deixa arrebatar pelo calor do exotismo.
O livro transforma-se sem chegar a trazer satisfação ao leitor que vê a história de assimilação de uma nova cultura - pois para aprender medicina o médico teve de aprender Mandarim ou escapar-lhe-iam detalhes essenciais - acabar sem uma resolução satisfatória depois de esquecida pelo próprio personagem.
Há que reconhecer que o investimento do leitor em tão grande número de páginas é grande, visto que estas exigem uma atenção à linguagem que retarda o folhear, sendo que raramente a causa para tal é a vontade de reapreciar um parágrafo: antes é a minúcia que é preciso ter para montar o puzzle da estrutura das orações do escritor.
Sem a satisfação do resultado da própria história para satisfazer tal investimento, não há hipótese de tornear a realidade para dizer que o livro merece ser lido.


O Português Inquieto (Kunal Basu)
Edições Asa
1ª edição - Abril de 2012
432 páginas

sábado, 22 de dezembro de 2012

Mais perto da composição ideal

Da primeira vez que me deparei com Giorgio Faletti não fiquei conquistado, mas também não fiquei afastado em definitivo.
As ideias eram demasiadas mas estavam lá com todo o seu potencial a precisar de um acerto mais eficaz.
Este seu livro vem, pelo contrário, com muito menos ideias mas muito mais riqueza, recuperando um elemento essencial que agora sinto que faltava ao seu livro anterior: um drama de personagens que precede a mera caracterização para servir o propósito da trama.
Trata-se de um livro de contornos muito mais "clássicos" do que o anterior, demorando-se com as duas personagens centrais - uma polícia sobrecarregada e um jornalista caído em desgraça que estão "condenados" desde o início a serem colegas e a terem um interesse romântico discreto (situação pouco imaginativa, mas útil a livro) - e as muito mais personagens secundárias que têm tempo para revelarem uma personalidade antes de servirem como mais uma peça para o puzzle final.
Estas personagens têm ligações a instituições sempre muito interessantes pela sua estrutura algo escondida e muito hierarquizada como são as forças militares e as estruturas católicas.
São elementos que vêm, também, adicionar um certo sabor a transgressão por parte do autor, o que cativa o público, mas a sua utilização vai-se encaixando sem exageros gratuitos.
A conjugação entre as várias personagens, os cenários em que se movem e os passados complicados, tornam a leitura numa corrida mais lenta em comparação com o outro livro do autor que já conhecemos, mas são elementos que tornam uma certa resistência necessária mais agradável.
E afinal, mesmo sendo o vilão da história um bombista e, portanto, mais apto para o thriller, acabamos por estar perante algo que é muito mais policial, por estar mais interessado nas personagens do que nas suas acções.
A demora na leitura de um livro (novamente) longo tem causas que acabam por merecer a quantidade de páginas extra. E estas podem criar alguns momentos mais intricados sem desmerecerem uma resolução capaz e lógica que surge logo de seguida.
Com tudo isto não pretendo esconder que Giorgio Faletti podia beneficiar com alguns cortes na linguagem em momentos de descrição minuciosa.
Tal faria com que apenas sugerisse o que tende a expôr - conquistando o leitor, que tem de investir mais na leitura - e reduziria ainda algumas páginas ao livro.
Se até aqui analisei o trabalho do escritor meramente enquanto tal, tenho também que assinalar o arrojo que teve um italiano em fazer passar pela sua história "americana" uma análise consciencializante do papel que os Estados Unidos da América têm no seu próprio tormento.
Colocar um bombista em acção em Nova Iorque, num ambiente pós-"11 de Setembro", arrisca sempre tocar num nervo ainda sensível.
Mas acabar por revelar que é o próprio passado do país que leva a que haja uma retribuição no momento presente é já ir além do elemento-choque para incorporar uma realidade histórica numa obra ficcional.
Um passado que não é só de relações externas, mas também da maneira como um país lida - usa? - com o seu próprio povo, ou não estivesse a Guerra do Vietname envolvida neste relato.
Com mais estes elementos acrescentados à mistura, Giorgio Faletti consegue guardar até ao fim uma surpresa forte que faz a espera valer a pena e aproxima-se do que deve ser a estrutura - fortificada pela experiência - para o género de livros que escreve.


Eu sou Deus (Giorgio Faletti)
Contraponto
1ª edição - Maio de 2012
376 páginas

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

A Consciência dos Tempos

Depois de Mona Lisa desaparecida ficou-me o gosto por um estilo de ensaio histórico de género policial que enrede num estilo emocionante um conjunto abrangente de revelações sobre o tempo em que decorreu.
Mas os elementos que unem estes dois livros - e, eventualmente, esta forma de abordagem - são mais complexos para a forma como encaramos o que o mundo foi e o que o mundo é por comparação.
Desde logo, o elemento criminal parece ser essencial para moldar uma reportagem longa a um page turner.
Isso leva a que os temas escolhidos sejam fortes e plenos de notoriedade mesmo tantos anos depois de ocorridos: antes o roubo da mais conhecida obra do mundo, agora um assassinato "impossível" numa carruagem de comboio.
O fulcro do tema que une os dois é, mais do que a criminalidade, a abordagem a um momento que mudou o âmbito do meio em que ocorreu, moldou o progresso futuro dos países em que se deu e, sobretudo, marcou um momento de perda de inocência do mundo.
Ambos os crimes marcam um momento em que uma confiança instituída se confronta com a transformação - para pior, claro - dos limites da moralidade humana.
A confiança que os franceses colocavam no valor cultural da Arte acreditando que esta se defendia de qualquer ameça é a mesma confiança que os ingleses colocavam no valor social das classes que protegiam as classes mais altas dos comportamentos desviantes das classes baixas.
O comboio, onde essa separação se exprimia fisicamente, era considerado seguro nesse aspecto, deixando o livro transparecer uma fé na separação auto-imposta de cada viajante de acordo com a classe do bilhete que comprara.
Os protestos quanto à segurança nos comboios falavam da impossibilidade de alguém se sentir mal e comunicá-lo ao condutor, mas não pensavam que alguém viria a entrar numa carruagem que não a sua - e, muito menos, que matasse alguém no interior do comboio.
São casos em que a honra culturalmente entendida servia como salvaguarda na mente de quase todos, o que torna ainda mais abrupto e violento o despreparado acordar para a nova realidade.
Claro que um livro com trezentas páginas não se sustenta só nesta perda da inocência.
Seguimos depois a investigação policial - e indignamo-nos com aspectos desta que hoje seriam inadmissíveis - até ao desenrolar do julgamento (a parte final do livro em que este perde algum ritmo por ser então demasiado minucioso).
Ficamos a conhecer o tipo de exploração jornalística do caso, muito mais desregulada e indecente do que a de hoje em dia.
No fundo ficamos a conhecer um momento em que o mundo estava confiante na sua auto-preservação à conta de regras de conduta não escritas. Mas em que estava, igualmente, latente - e até mesmo expectante - um carácter predador de um qualquer momento de menor dignidade humana.
Este momento da história do final do século XIX - nunca de forma isolada - haveria de deixar marcas nas exigências de exemplaridade que a sociedade haveria de fazer às entidades envolvidas no caso.
Na mesma medida, deixaria marcas na maneira como a sociedade reagiria, com tanto de fúria irracional como de curiosidade mórbida, ao tipo de delito cometido e noticiado mundialmente, sem controlo local de espécie alguma.
Mais um exemplo contribuindo para a perda de inocência que tornou os "bons cidadãos", em simultâneo, em vítimas e criminosos. Vítimas, inevitáveis, do seu próprio medo ao menos. Criminosos, por cumplicidade, da exploração de cada crime.
Os "bons cidadãos" ganharam consciência do mundo em que viviam e nós tomamos consciência das raízes do mundo em que agora vivemos. Tudo à conta de um homicídio violento numa carruagem de comboio que viajava com destino a Hackney ainda no ano de 1864.


O Chapéu do Sr. Briggs (Kate Colquhoun)
Bertrand Editora
1ª edição - Junho de 2012
312 páginas

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Biografia sóbria para uma vida dramática


Os contornos gerais da história de Aristides de Sousa Mendes são conhecidos, mas não há dúvida de que os detalhes devem ser melhor divulgados.
O salvamento de trinta mil vidas é um feito assinalável mas que ganha ainda mais força no contexto de uma vida definida pelo que o homem foi antes e sofreu depois.
A enormidade extraordinária do acto de passar vistos sem excepção alguma cresce pela maneira como surge - de uma dura confrontação da consciência com o dever que o manteve três dias prostrado perante si mesmo - e pela maneira como o deixará - na pobreza e muitas vezes só até ao fim da vida.
O que ele penou em nome de trinta mil vidas merece acompanhar todos os relatos que se vão esvaziando a pouco e pouco até deixar apenas um heroísmo fácil de alcançar.
Até porque não é só a consciência moral de Aristides que deve ser enaltecida, mas também a sua consciência enquanto servidor do país.
Aristides quebrou as regras que lhe eram ditadas pelo governo de Salazar por crer que estas estavam erradas perante a Constituição Portuguesa e que, como tal, estava a preservar a imagem de um país perante o Mundo e perante o Futuro.
Uma verdade que o Tempo tratou de confirmar não sem que antes o próprio Salazar - que, com a ingenuidade dos que medem nos outros a mesma elevação que é a sua, Aristides cria estar a ser mal aconselhado - recebesse louvores por ter permitido a tantas pessoas receberem vistos e atravessarem Portugal em direcção à salvação do outro lado do Oceano Atlântico.
Para se poder reconhecer o verdadeiro heroísmo do homem deve, pois, compreender-se o risco em que esteve a correcta memória dos seus actos.
Esta é uma biografia que valoriza essa percepção, sóbria e directa no relato dos dados mais importantes que marcaram a existência de Aristides.
José-Alain Fralon mostra um distanciamento reconhecido - e não reverente - ao sujeito sobre quem escreve, permitindo-lhe relatar sem embaraço nem exagero a verdade reconhecida.
Sendo essa a mais significativa característica de Fralon enquanto biógrafo, torna-se também no fundamental instrumento de frustação para o leitor em alguns momentos do livro.
O autor parece tocar alguns momentos da vida sem aprofundar - ou arriscar reflectir ele próprio - sobre os latentes confrontos entre o carácter um pouco dúbio e a acção sempre meritória do biografado.
Não se trataria de ceder a qualquer promiscuidade de paparazzo moderno, pelo contrário, serviria a enaltecer os actos de Aristides perante as suas falhas mundanas e compreensíveis.
Entenda-se tal reparo como a vontade de encontrar um tratamento dramático para a vida de Aristides que o encorpasse ainda mais como figura do seu tempo e como herói acima de qualquer outra das suas características.
Uma leitura importante que pede - pela dimensão e pelo tempo que sobre a sua publicação original passou - que nela peguem para mais longe chegarem com a matéria promissora com que se fez a vida do Cônsul de Bordéus.



Aristides de Sousa Mendes - Um Herói Português (José-Alain Fralon)
Editorial Presença
4ª edição - Outubro de 2012
128 páginas

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A (con)fusão de autor e narrador

Estes contos são exercícios de memória. Não sei se do autor mas, certamente, do narrador que aquele diz ser transversal a todos os textos  deste volume.
Digamos que, pelo menos, os locais dos eventos sugerem a coincidência entre autor e narrador. E isto é importante para a leitura global deste livro.
Até porque o livro comporta um intróito do autor que revela a insistência de alguns amigos de longa data na vontade de reler alguns dos seus contos, sugerindo que estes especialistas (palavra do autor) o são por (con)vivência directa com Fernando Évora - e as suas desventuras ou os seus relatos de café.
Os contos insinuam a necessidade de uma familiaridade com o contexto dos eventos - o contexto original de publicação em fanzines pode explicar tal noção. Não há ricas construções de ambientes e tanto os cenários como diversas personagens parecem fazer parte de um léxico comum, mais ou menos identificável por quem conheça aquelas personagens ou outras similares.
Nesta forma de escrita para um público "iniciado", talvez nos textos ressoem características dos locais e das culturas ali representadas, mas para quem lê os textos à distância geográfica fica apenas a curiosidade de infâncias distintas ou situações caricatas.
Tudo contado, demasiadas vezes, em jeito de despojamento realista, sem efeitos (ficcionais ou revisionistas) de êxtase ou catarse.
O relato assim deixa o leitor ora curioso ora frustrado, sem direito a confrontar o texto pois as histórias são tão singelas na sua composição que parecem de uma pessoalidade intocável - e que tal como está deveria ser intransmissível.
Rematando e comprovando esta ideia de memórias passadas a texto, Fernando Évora termina o livro com um Epílogo. Este é um conto novo em que ele continua o jogo de rememoriação para dentro dos próprios contos, citando a sua escrita e as suas verdadeiras ocorrências.
Dá a sensação de vir justificar a sua afirmação inicial de que o narrador de todos os contos é o mesmo e este acabam por se interligar, rematando o livro de maneira que este seja um contínuo e não uma compilação.
Forçado e desnecessário, dá uma estranheza ao livro que obriga, em definitivo, a confrontarmos esta ideia de continuidade com o primeiro dos contos, Cérebro, que traz logo abaixo do título um "Eu, o narrador, escrevi um conto de ficção científica".
Se estamos perante um modo de metalinguagem em que o narrador é uma personagem supra-contos e até supra-livro, então o autor deveria ter evitado pronunciar-se e ter reassumido a figura de narrador ainda o livro ia no intróito.
Neste jeito de revisão de vida - tal como denuncia o Epílogo até ao nada discreto último parágrafo - em que o narrador e o autor se confundem o livro não se une nem define o seu público além dos tais especialistas.


Amor e Liberdade de Germana Pata-Roxa (Fernando Évora)
Esfera do Caos
1ª edição - Agosto de 2012
130 páginas

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Poucas páginas de um grande fôlego

As novas tecnologias têm permito a muitos escritores (e argumentistas, já agora) encontrar soluções fáceis - e, consequentemente, simplistas - para tramas que montaram com esmero.
Pequenos precalços - um telemóvel que não foi colocado no modo "Silêncio", um portátil deixado desbloqueado em cima da mesa - que substituem o esforço das personagens que antes perdiam muito mais tempo a superarem as barreiras que encontravam.
O caso d'O Escritor-fantasma é o oposto, potenciando um trabalho clássico através das características da internet.
Ou seja, nesta história em que o correio de fã se confunde com a chantagem e em que a discussão entre escritores se confunde com a raiva, o email surge como hipótese de acelerar o processo de recepção das mensagens: em vez de decorrer num período alargado, tudo ocorre num único dia.
Mais do que isso, o email permite que o protagonista responda a quem a ele se dirige, ainda que continue sem conhecer a respectiva identidade de algum deles.
Esse é um detalhe, mas um detalhe significativo que permite realçar a perspicácia de Zoran Živković enquanto escritor a braços com o mundo moderno mas com a inventividade de uma literatura passada.
Este seu pequeno (mas riquíssimo) livro é um jogo desafiante sobre a natureza de ser escritor, sobretudo quando confrontado com as muitas exigências externas.
Não se trata apenas das exigências que outros fazem ao seu talento e esforço, mas também do facto de cada vez mais a escrita pausada e retrabalhada ver o tempo que lhe é devido diminuído pela escrita mais imediata.
No mundo de hoje, escreve-se (e lê-se, já agora) mais mas nem sempre melhor. Quanto texto produzimos (e encaramos) fora do âmbito literário? E quanto desse texto sobreviverá para lá do espaço limitado dos discos rígidos e da memória que salta para a página seguinte?
O livro serve como consciência das novas distracções que o mundo opõe à arte literária e do esforço que representa manter-se como peão desse mundo.
Tudo num estilo cativante que oferece um verdadeiro tratado de psicologia dos seus personagens, levado até ao limite por uma resolução da qual até se pode desconfiar mas na qual não se consegue acertar.
Um final que reafirma que tal execução só é possível num obra literária, reiterando a importância que esta ainda guarda e afirma por entre todas as outras artes narrativas.
Na verdade, o confronto a roçar o thriller que se faz por email só se consegue num meio que valoriza a palavra, que permite que tudo se passe apenas com uma única "presença física" mas com um trabalho redobrado na elaboração precisa do texto que é enviado ou recebido.
A verdadeira emoção surge dessa busca pela expressão exacta, pela correcta maneira de dar a entender ou de deixar por entender a verdadeira intenção do autor de cada missiva.
São um pouco mais de cem páginas com várias outras nuances que cada leitor quererá descobrir por si. Um trabalho de verdadeiro escritor sobre textos e falta de inspiração.

Numa nota paralela, devo recriminar (ligeiramente) a Cavalo de Ferro, editora que muito me agrada e que até hoje não me merecera tal reacção.
A verdade é que a presença do texto crítico de Michael A. Morrison no lugar de posfácio é um abuso editorial.
Não acredito que tenha sido só para encher páginas, pelo que não é nesse sentido que faço o reparo.
Assinalo-o como revelador de uma leitura d'O Escritor-fantasma que tem como base um conhecimento detalhado de toda a obra de Zoran Živković, a que o leitor português (ainda) não teve acesso.
O texto, que justifica um exercício literário que ainda não tínhamos conhecido da parte do escritor, acaba por servir como substituição à necessidade de publicar as restante obras do autor, assim justificando a escolha para edição deste texto recente por algo mais do que a sua actualidade.
O posfácio deveria vir com um aviso sério sobre as revelações que lá ocorrem e sobre a maneira como faz uso de muitos excertos do autor a que não tivemos acesso.
É um caso que faz pensar nos méritos da troca das edições portuguesas pelas inglesas para ter acesso completo ao autor. Não sendo um caso demasiado grave, é uma falha que atinge a sensibilidade dos leitores.



O Escritor-fantasma (Zoran Živković)
Cavalo de Ferro
1ª edição - Maio de 2012
144 página

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Um divertimento

No texto Utilidade de uma Literatura Erótica, transcrito de uma conferência dada por Boris Vian, esta defende as qualidades dos textos desse género que lhes permitiram permanecer na exigente memória dos amantes da literatura.
As qualidades não eróticas dos mesmos, como a filosofia nos textos de Marquês de Sade, contrariando a expectativa do que deveria ser elogiado nesses textos.
Boris Vian reforça a ideia de que um texto erótico, como qualquer outro material erótico em qualquer suporte, tem uma funcionalidade que passa pela excitação do leitor.
A qualidade literária é questão de somenos para quem pretende escrever dentro desse género (e apetece dizê-lo olhando para o que por estes dias é publicado em catadupa e vende com fartura) que tem antes de mais de dar ao leitor o que o faça palpitar, talvez cumprindo um sistema que invento para o efeito: uma cena de sexo em capítulos intercalados e ameças cada vez menos veladas de tais cenas nos restantes.
Boris Vian faz, então, a defesa dos textos de género que escapam ao género, esquecendo várias vezes a utilidade que deveria estar a abordar.
Parece com isso estar a lançar a provocação para os seus próprios textos pornográficos que leremos de seguida.
Nesse primeiro texto mostra que podem existir textos de elevação literária e qualidade estética que são classificados como eróticos para depois se lançar em tentativas próprias, com momentos bem sucedidos mas raramente com a utilidade em mente.
Textos em que ele joga com o humor, com os subentendidos, com a réplica literata, mas sem grau maior de seriedade.
Como se escrever textos pornográficos fosse uma provocação de um autor sério que se pode - e deve - permitir tudo em nome da liberdade de criação.
E em nome da transgressão final, de não ser sempre sério, de permitir a si próprio - contra a opinião pública ou crítica - tirar prazer do seu talento e do ofício de escritor, deleitando-se com o que raramente é tido como material para escritores de primeira linha.
Do extremamente conseguido (e bem traduzido) divertimento em forma de poema que é A Marcha do Pepino ao momento maior de entre estes textos que é Drencula (leia-se com a pronúncia francesa para perceber bem o seu sentido), não haja dúvidas que todo o potencial para o género erótico sem uma ponta de seriedade estava em Boris Vian.
Mas o seu divertimento maior deverá ter sido mostrar ao mundo um material erótico que alimentasse uma polémica que para ele esteve sempre resolvida.


Escritos Pornográficos (Boris Vian)
Guerra & Paz
1ª edição - Setembro de 2010
98 páginas

sábado, 17 de novembro de 2012

Para quebrar o círculo

Gonçalo M. Tavares diz no Posfácio - uma segunda metade de obra, para todos os efeitos - que só pela ordem alfabética se consegue progredir, como que em milagre, pela loucura das pequeníssimas ligações humanas invisíveis a quem olha em exclusivo para a imagem global ou para a história de individualidade.
Na verdade, o milagre da organização vem dessa maneira peculiar do autor encarar as fantasmagorias humanas como retratos significativos de um mundo que é uma personagem maior definida por tais individualidades.
Cada segmento de acção credível a aproximar-se lentamente de um surrealismo cujo fascínio vem da maneira como se torna aceite enquanto transformação natural da lógica ou da habituação.
Como Aaronson correndo em torno da rotunda anos a fio, acabando por tornar a estranheza em naturalidade.
Seguindo as pequenas ligações que definem o "mapa humano" que se justapõe a um lugar, de Aaronson a Matteo é um salto vertiginoso que merece uma segunda leitura em que o conhecimento do texto faz pausar a vontade de o percorrer, pois há magníficos detalhes que se destacam das pequenas histórias de vida.
Pois mais curiosa ou contraditória que seja a ideia, é mergulhando nos detalhes vamos compreender melhor o global do retrato composto por Gonçalo M. Tavares e, arrisco dizer, do mundo tal como ele é aqui fora antes de retrabalhado pela visão do autor.
Haverá poucos autores em Portugal (deixo o Mundo para outra altura) a seguir tal modelo de admiráveis universos em que tudo se interliga pela visão agregadora da sua imaginação. A base real serve para a construção de fantasiosas interpretações que tornam extraordinária a descoberta caricatural com que o autor olha à sua volta.
Para seu par chamaria José Carlos Fernandes e a sua A Pior Banda do Mundo ou, até com mais proximidade ao modelo individualizante de Matteo perdeu o emprego, Pessoas Que Usam Bonés-Com-Hélice
A referência vinda do mundo de banda desenhada não deixa de ser feliz tendo em conta a preponderância do trabalho gráfico neste livro.
As vinte e cinco fotografias de manequins levam ao limite a ideia de círculo que o autor desenvolve no carreiro de personagens (e depois discute no Posfácio) dando a ideia da possibilidade de todos os nomes e retratos não serem senão identidades possíveis para uma mesma individualidade, assente no retorno a uma base material comum e uma humanidade - repare-se nos olhos... - fingida.
Ou, se como o autor arrisca, o círculo apenas assim para ser na verdade uma elipse, talvez seja caso de dizer que cada história, cada nome, cada imagem é uma aproximação mais ou menos distante ao ponto nevrálgico de uma identidade humana transmutada pela idade ou pelo género.
Como grande jogo circular que é, a primeira parte do livro pode não passar da rampa de lançamento para uma continuação que partiria de Nedermeyer e a primeira rotunda, capítulo listado no índice mas sem correspondência no que toca a uma página.
Continuação na criação de um universo que, esgotado o ordenamento do alfabeto, repetiria as letras até completar outro círculo.
Se bem que as verdadeiras ligações são as dos nomes ao centro, pelo que poderão interessar mais os raios traçados - e os infinitos raios por traçar - do que o traço do círculo que se faz por via da tal primeira rotunda.
E no final do Posfácio o autor ainda se vem regalando com a ideia de que a qualquer nome se poderia seguir um outro, embora para todos existirem fosse inevitável a ligação.
Esse Posfácio é um risco do autor, pois acaba por ser uma reflexão anti-autoral. Uma abordagem explicativa mas tendendo a afunilar as perspectivas, embora (de forma aparente) proporcionando uma leitura mais colada à do autor.
Claro que essa forma de manietar a leitura é uma forma de a fazer explodir, espicaçando o espírito crítico do leitor por o tentar moldar.
Ainda aí, também, em círculos com o nosso entendimento até nos lançar para mais uma leitura do livro, agora informada e desejosa do contraditório: do caos conseguido pela leitura intercalada dos nomes dados aos acontecimentos e que assim os tornam humanos, dando a compreender o "monstruoso e informe", que é o mundo como um todo imperscrutável.
Mais um círculo (ou forma aproximada), mais um jogo, mais um desafio ao leitor.


Matteo perdeu o emprego (Gonçalo M. Tavares)
Porto Editora
2ª edição - Dezembro de 2010
216 páginas

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

As extraordinárias páginas que não estão lá

Há um livro que se lê com a sofreguidão de quem logo gosta dele em excesso. Chama-se Uma Mentira Mil Vezes Repetida e é palpável.
Há outro livro que se imagina ler, que se quer ler, que se sente ler. Chama-se Cidade Conquistada, é um épico de mil e duzentas páginas, e está escondido por detrás das duzentas páginas do primeiro livro.
Este segundo é um livro que existe sem que ninguém o possa vir a tocar, mas que todos os leitores desejariam ter pois é a súmula da Grande Literatura escrita com atenção aos interesses individuais.
Cada leitor de Uma Mentira Mil Vezes Repetida encontra em Cidade Conquistada uma versão do épico que sempre quis ler, completando por si mesmo as páginas em falta em torno dos pequenos episódios que fica a conhecer. Tantas páginas em falta quantas as hipóteses de as reinventar.
Cidade Conquistada é, afinal, criação verbal - sustentada por uma capa igualmente inventada para encadernar textos vários de outros tantos autores - de um passageiro de autocarra apostado em chamar à sua criação o fascínio de quem se permita ouvi-lo. Para depois lhes deixar a impraticável promessa de lhes vir a emprestar o livro.
Promessa que não é um afastamento mas a oferenda de uma hipótese de sonhos e de criação individual em torno do episódio inventado e relatado na hora.
Pois é de criação e não de literatura que o livro fala, ainda que a Cidade Conquistada surja como obra de síntese das melhores características dos autores favoritos - da personagem, do autor, do leitor... - numa idealização impossível mas desejada.
Se pudesse, o leitor tornar-se-ia um editor omnipotente de toda a sua biblioteca e não apenas de um livro, fundindo um estilo de um autor com as ideias de outro livro e o ritmo de um terceiro.
Todos os jogos de citação de Borges, Kafka ou Bolaño acentuam pelo reconhecimento literário e tornam os leitores em garimpeiros das memórias bibliófilas que possuem em partilha com o autor (de um ou de outro livro). Mas não apagam o facto da ideia central estar para além do suporte exclusivo do papel.
Todo o meio de expressão da criação é uma forma de imperfeição. O que é extraordinário é a imaginação e não a obra.
Por mais que alguns o afirmem, nenhuma autor está plenamente satisfeito com o resultado final da obra pois esta nunca consegue captar aquilo que a mente expressou numa forma que é única e absoluta, sem limitações ou dúvidas.
Daí que o personagem-criador do autocarro nunca tenta passar o seu livro inventado a papel, mas tente expressar de imediato e da forma mais livre possível a sua invenção.
Assim atingirá o pico de efeito com que muitos autores apenas sonham. Um efeito apreendido pelo autor de imediato, visto que quebrou a barreira da falta de convivência do autor com o leitor.
A par da barreira do autor com a História. A sua fabricação vai ao ponto do mito em torno da vida daquele livro que supostamente tem nas mãos, criando um intricado percurso para a passagem do livro do alemão ao português e dos anos de 1940 ao século presente, a que soma os próprios estudos académicos que o livro já mereceu.
Mas e sobretudo, essa sua forma de concretizar a obra de forma efémera - embora certamente perene a nível individual de quem parte com a consciência de um mero excerto - permite-lhe nunca ter de "dar a obra por acabada", consessão triste que os autores fazem por não poderem (ou não os deixarem) passar a vida toda a retrabalhar o mesmo livro / a mesma tela / o mesmo filme.
Sendo uma obra sempre em construção, permite ao seu autor sentir-se a cada momento realizado de maneira distinta; permite-lhe engrandecer sempre o resultado que forma na sua mente; permite-lhe não aceitar que a concretização empalideceu a sua imaginação.
Só mesmo o risco de perder tais conquistas o leva a abandonar o projecto, quando num toque de criação usa elementos da realidade à sua volta para pintar o mito e, nessa altura, percebe o quão baço se pode tornar o livro quando está próximo de uma espécie de concretização.
Só há um livro que interessa realmente ler e divulgar, o livro inalcançável que é perfeito para todos os leitores por ter para cada um uma dádiva intransmissível.
A versão sonhada de Cidade Conquistada é a grande oferta que nos faz Manuel Jorge Marmelo, transformando cada um de nós em viajante de autocarro - e que bom foi ter lido o livro no interior de uma sucessão deles -, tanto receptáculo quanto criador de um novo e distinto Cidade Conquistada.
Mas não há como deixar de afirmar que a grande obra é o real Uma Mentira Mil Vezes Repetida que após duzentas páginas - excelentes e mais do que auto-suficientes - nos deixa a desejar mil e duzentas páginas mais.


Uma Mentira Mil Vezes Repetida (Manuel Jorge Marmelo)
Quetzal Editores
Sem indicação da edição - Setembro de 2011
208 páginas

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

O problema está no resto

A novela que se configura como o texto principal do livro é dos mais divertidos retratos de um país que se mantem num regime de brandos costumes... cada vez mais ousados.
Os costumes só são brandos por se manterem silenciados pela aparência da moralidade. Os lençóis, na verdade, não abafam som algum antes motivam que estes se agudizem.
A sociedade portuguesa, bairrista como sempre, está cheia de paixões e desamores entre o mesmo pequeno conjunto de personagens de historietas.
Daí que a história revele a coincidência ácida do destino encafuado num reduto que, até pela sua forma geométrica, se assemelha a uma rua onde ninguém escapa ao olhar atento do vizinho.
Há um trio amoroso pacificado, que sabe partilhar-se embora fingindo uma compreensão que tem de recorrer ao adágio "longe da vista, longe do coração".
Os sentimentos acalorados continuam a dominar o mais moderno dos animais sociais que, à conta de uma elevação racional a que se sente obrigado, aceita a construção de um cenário em que dá a si próprio a hipótese de uma decisão.
Tudo é uma ilusão que ele - pois quem senão o homem da relação se deixaria levar tão facilmente - prepara para se conformar de que a mulher não pode viver só com ele. Como cantava Juca Chaves há já muitas décadas atrás, "Esta é a vida que eu sempre quis / Eu sou cornudo mas eu sou feliz".
Não se trata de uma farsa, os sentimentos de todos são sinceros por todos os outros. Tem é de se continuar a mentir sobre o destino da outra metade do casal.
Deixou de ser possível fingir que não se sabe e, com isso, sossegar a consciência própria para parecer bem à sociedade em volta. Agora é preciso fingir que não se sabe apenas para parecer bem à sociedade em volta. Apesar do modernismo, a consciência dos outros sobre a consciência do seu próprio estado marital continua a ser motivo de uma vergonha que nenhuma racionalização vai levar a que seja superada.
E, por isso, os costumes continuam brandos e as vidas continuam mansas...

O resto do livro são, de facto, histórias. Mas não boas, lamento dizer.
O próprio autor descreve o motivo para isso no penúltimo dos seus textos, "Se não fossem as surpresas, a vida seria um imenso tédio.", bastando substituir a palavra "vida" por "histórias" e temos a condenação final merecida e dada pelo autor.
Tirando duas das histórias - e estou a ser generoso com uma delas - nenhuma deles consegue surpreender ainda que o autor faça o seu melhor para criar finais que sejam inesperados. Mais do que inesperados ele quer que eles sejam irónicos como a tirada final de vidas anedóticas.
Como num espectáculo de magia, o autor bem nos faz olhar para o lado contrário àquele onde vai decorrer o trabalho essencial do truque mas com uma falta de talento que leva a que, no tempo todo até à revelação final, já tenha deixado demasiado claro o seu método. Podemos fingir acreditar no truque mas apenas por simpatia.
A sua ironia final é sempre o final anunciado pois por mais voltas que sejam dadas, a espiral de acontecimentos nunca pode senão ir parar àquele ponto central sem escapatória.
O mesmo acontece, há que reconhecer depois de todo o livro lido, a Longe é um bom lugar mas cujas falhas são compensadas por uma construção mais extensa que inclui detalhes mais expansivos da intriga que lhe dão outros laivos de interesse sem que venham a depender do momento final.
Na extensão brevíssima de não mais que meia dúzia de páginas, Mário Zambujal consegue apenas seguir o caminho do inevitável.
Um caso em que a imaginação do autor já está deformada para um caminho específico que é o mais facilmente - ou preguiçosamente, lamento dizer - descoberto pelo leitor e, portanto, aquele a ser evitado pelo autor.
Depois do efeito do texto mais longo, estas suas histórias são fintas à mentalidade vigente, mas acabam sempre por ser simuladas mas nunca concretizadas.


Longe é um bom lugar (O resto são histórias) (Mário Zambujal)
Clube do Autor
1ª edição - Outubro de 2011
152 páginas

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Palavras que cantam

O livro já estava lido e à espera da crítica há algum tempo, mas com o concerto do autor no Pavilhão Atlântico a forma inicial do texto altera-se, apenas em parte involuntariamente.
Torna-se difícil não encontrar pontos comuns entre o intérprete e o escritor quando os encontros com cada uma das encarnações estão tão próximos, mesmo se elas distam quase cinquenta anos entre si.
Ver Leonard Cohen ajoelhado no palco é percepcionar uma forma de comunicação com o divino, não numa oração mas na protecção das suas palavras para que Deus se debruce para melhor o ouvir.
Uma abordagem à religião onde obriga Deus a religar-se ao que os humanos têm de extraordinário, a aproximar-se do nosso domínio.
O mesmo que faz em Vencidos da vida onde faz com que a concepção do divino e o mais primordial - mas também o mais complexo - dos desejos humanos se cruzem.
Desejo esse que é sexual mas, inevitavelmente, também afectivo. Por isso a complexidade das relações que se estabelecem entre três pessoas, três amigos, três amantes.
Relações que os satisfazem enquanto os encaminham para uma crescente perda, uma crescente miséria e uma crescente destruição. E, eventualmente, uma breve salvação final talvez incompreensível.
Mas Leonard Cohen em palco não é apenas uma lenda curvando-se para melhor se expandir para o público. É, também (e ainda), um energético duende, saltitando pelo palco como que distribuindo uma alegria que falta ao público bem mais novo. Um duende cujo mágico tesouro guarda em si mesmo.
Cohen não se esquiva a usar no palco todas as hipóteses que despertem o espectáculo e o mesmo faz com o livro.
Ele chamou-lhe um delírio, quem o analisou chamou-lhe experimental, mas no fundo trata-se da forma que um escritor tem de concluir a tal ligação entre divino e terreno/sexual/animal, que é tentar ligar todos os pontos do universo que estão entre um e outro ponto: tocar todos os destinos e falhar todas as hipóteses, ir a todo o lado sem sair do limite da página em branco.
É por isso que a par do triângulo amoroso, uma outra história se cruza neste romance, a de uma índia Mohawk que se tornou santa no século XVII de nome Kateri Tekakwitha.
É por isso que todos os estilos literários e todos os géneros narrativos se espraiam pelas páginas sem que haja regras que os limitem.
Tudo cabe nestas páginas porque as frases ganham liberdade para se elevarem acima da sua condição de palavras sequenciadas.
Podem assumir a forma que quiserem porque quem as molda as criou como se elas não tivessem existido já antes dele. E por mais formas retorcidas, todas as frases reconhecem-se como pertencendo ao mesmo autor.
Com os novos arranjos, todas as músicas de Leonard Cohen parecem fazer parte de um único corpo, pleno de classe e classicismo.
Se nem todas são obras-primas inesquecíveis, não se pode deixar de as ouvir a todas para melhor compreender a forma como de entre o bom se destaca o excelente.
O mesmo se conclui do livro. Nem sempre nos arrebata, mas para ler frases como A noite é a gasolina dos meus sonhos desperançados., todas as páginas merecem a nossa atenção.
Assim é quer com a música, quer com as palavras escritas. Assim é com Leonard Cohen, um criador acima de todos os outros e tão igual a nós.


Vencidos da vida (Leonard Cohen)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Julho de 2011
296 páginas

terça-feira, 25 de setembro de 2012

O Portugal que merecíamos

A antologia de pulp fiction portuguesa é um livro revelador. Quer em termos literários quer em termos históricos.
Descobrem-se no meio destes contos ideias que, ainda hoje, são vendidas como novidades em meios tão distintos como o cinema, seja série Z ou produções de grandes meios.
Isso é um atestado da originalidade e da bravura com que estes escritores se atiravam à conquista do público pois é desse trabalho que nos fala este livro, o de atrair semana após semana os espíritos mais ousados e insaciáveis de Portugal.
Os leitores que exigiam que os enchessem de adrenalina a cada nova página não admitiam que lhes impingissem um qualquer produto, reconhecendo os méritos de um autor contra a produção em massa de uns assalariados.
Quem agora os lê constata o quanto pode aprender destes autores relegados da memória colectiva.
Apesar dos géneros em que escreviam, para serem autores vendáveis tinham, primeiro, que dominar a linguagem de forma exímia. Depois, iam mais longe e tornavam-se em exímios minimalistas, purgando o texto do desnecessário aos efeitos - acção, terror, suspense... - que pretendiam alcançar.
Neste seu conhecimento da Língua e na sua tentativa de serem o mais eficazes possíveis, acabavam por usar o Português de maneira sugestiva e mais criativa do que em textos que costumam ser colocados no cânone.
Quem quiser escrever deverá começar por saber moldar-se a qualquer género e saber narrar ousadamente através dos mínimos recursos. Sobre isso poderá fazer crescer um estilo opíparo se assim o desejar.
A revelação história sobre o que enfrentava esta literatura num país dominado por figuras que se ortougavam   decisões sobre o que se poderia saber e escrever até mesmo nas revistas de baixa circulação que a própria sociedade de bons costumes (na sua maioria) rejeitaria.
O ensinamento de como pensavam os censores é o mais importante deste livro, com a publicação das notas a lápis azul (há que imaginar a cor) feitas a "A Noite do Sexo Fraco".
A lentidão de reacção e a fúria do censor mostra que nem eram assim tão limitados nem assim tão inteligentes. Gente normal com mais ou menos sensibilidade (como quem hoje classifica os filmes a sair de Hollywood, por exemplo) e que tentava o seu melhor.
E, em paralelo, aprendemos o grau de versatilidade e esperteza que os autores tinham de alcançar para passar pela censura sem perderem a própria história no processo, visto que os cortes assinalados não permitem que a história se recupere.
Esta é a edição portuguesa mais importante deste ainda imberbe século XXI, um alerta contra o esquecimento e uma revelação das outras formas que pôde e pode assumir a criação literária por cá.
Mais do que isso, este é o livro que vem a tempo de lançar uns poucos novos leitores na demanda pelas revistas da época que ainda escapem aos coleccionadores.
Quem terminar este livro sem vontade de reencontrar tanto os melhores como os piores destes personagens nas suas restantes aventuras será um leitor a quem falhou o sentido de fascínio e escapismo que os livros proporcionam e que levam à solitária forma de sentir-se completo.

Mas não partam já à procura dos alfarrabistas mais remotos!

Tudo isto é uma crítica verídica a um livro inventado, que fascina por completo porque se crê que partiu de  publicações reais.
É a mais brilhante encenação literária portuguesa, o embuste em que tem de se cair porque se tornou real, com a criação de vários fac-simile credíveis (pelas suas imperfeições, inclusivé) até mesmo nos anúncios, de várias biografias sérias na dúvida levantada ou de vários contos que ninguém sonharia publicar nestes tempos de Literatura com a inicial bem elevada.
A verdade é que se criou um Portugal novo e atraente. Entre as biografias inventadas que criam um retrato de um nicho da sociedade que é uma história de méritos próprios - com identidades desconhecidas, traições em cima da publicação, casos amorosos e rivalidades ferozes - e os próprios contos de estilos tão diversos e precisos que criaram cinco décadas de literatura alternativa com coragem num país de brandos costumes, há uma realidade mais atraente por detrás destas ficções.
Deve-se, por isso, crer que os verdadeiros autores dos contos - quem me dera poder dizer que os identifiquei - são ainda mais brilhantes do que parecia à partida.
Não só porque criaram um estilo diferente do seu (acredito que tal seja inevitável) sem deixarem de lado a atracção dos leitores por aventuras impossíveis.
Não só porque se capacitaram para o uso de ferramentas literárias tão ousadas quanto a censura ou as notas de rodapé que assim complementam o texto (e com isso fazendo a crítica do período histórico em que situaram o conto).
Mas, acima de tudo, porque "inventaram" para o nosso país uma rara linha paralela de especulação histórica da literatura, cujas narrativas poderão criar uma série de fiéis que continuarão a criação de heróis, de publicações e de autores.
De tal maneira que, um dia, a pulp fiction que nunca existiu no nosso país passe a ter existido e a História confunda em definitivo o que se criou a partir daqui com o que poderia ter sido criado até ao "Ano Negro".
Nunca houve material mais apropriado para lançar os leitores na forte loucura da escrita de fan fiction, recriando o Portugal que quer agora ler.
Se estes contos tivessem existido nas décadas que lhes eram atribuídas, teríamos hoje muitos autores inspirados por elas, arriscando no seio da seriedade dos grandes nomes. Espera-se que agora ainda vão a tempo de inspirar muitos autores novos a começar pelas aventuras irresponsáveis antes de se quererem afirmar entre aqueles que discutem os prémios literários.


Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa (Luís Filipe Silva - Organização)
Saída de Emergência
1ª edição - Outubro de 2011
416 páginas

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Ta(o)nta felicidade

Este é um romance notoriamente pós-Le fabuleux destin d'Amélie Poulain.
Um romance que não se fica só pela linearidade da sua história mas passeia-se por um mundo de detalhes que surpreendem pelo encanto ou pela estranheza.
Os capítulos que são apenas uma lista, uma definição de dicionário ou a letra de uma canção intrometem-se na narrativa como indicações de contexto popular que o próprio narrador não daria mas que o leitor apreciaria.
O encanto de tais interrupções não é permanente, funcionando melhor se há mais relevância no que surge de fora ou se faz eco na própria narrativa.
O resto do tempo, a interrupção é indesejada mesmo se curta, porque não tem a função que tinha no filme, de escapatória para a personagem central que acabava por definir a sua embaraçada acção exterior.
As informações intercaladas são responsabilidade única do autor sem que a sua inevitabilidade esteja provada.
Isso talvez seja assunto de somenos num livro de leitura leve, um pequeno romance de modestas intenções.
Um romance assente na delicadeza das personalidades que constroem um amor poderoso com base na inoperância emocional que causa, a ele e a ela, acidentais tribulações que acabam por provocar no outro reacções vibrantes (e assolapadas?).
Um amor franco-sueco pode nascer de uma entrada a destempo num escritório onde um beijo de celebração (e sem segundas intenções) o apanha de surpresa. E pode crescer com a recusa dele em continuar com os jantares que não avançam para o amor que ele sente, o que acaba por o tornar misterioso aos olhos dela.
Se o amor floresce pelo acaso, já não é só pelo acaso que as pessoas florescem no amor.
Antes apagados na sua pequena comunidade, afirmam-se como as mais interessantes das personagens, primeiro pela imaginação alheia e, no final, pela sua própria determinação.
Não é o tipo de livro que conheça bem, mas entendo que esta é uma história esperançada, própria para ser lida nos tempos melhores de cada um ou passará por uma cruel exibição de felicidade.


A Delicadeza (David Foenkinos)
Editorial Presença
1ª edição - Agosto de 2011
323 páginas

domingo, 16 de setembro de 2012

O que se passa nos ecrãs

Popcorn é uma leitura interessante para aqueles que gostam de cinema e, em particular, que gostam de Reservoir Dogs, de Natural Born Killers, de Scarface ou até de Bonnie and Clyde.
Todos filmes que tornam a violência num espectáculo sedutor. E todos filmes que levantam questões sobre a legitimidade de fazer dinheiro, ganhar fama ou construir uma carreira à base da glamourização e da exploração dessa violência.
As consequências que esses filmes têm nas mentes mais influenciáveis é a discussão que o livro segue no momento da coincidência de um desses filmes valer o Oscar de Melhor Realizador a um jovem cineasta e um casal de assassinos que atravessam os Estados Unidos da América deleitando-se com sádico prazer.
As trajectórias acabarão por ter um ponto de intersecção num rapto do casal ao realizador (e família e convidados...) em que Ben Elton, argumentista primeiro e agora escritor, leva o debate directamente "aos lares americanos" colocando o rapto e a violência, sobrando a verdadeira decisão sobre se é aquilo que a América quer ver ou condenar nas mãos dos produtores de televisão e dos espectadores.
A situação criada seria um alerta às consciências se não estivessem todos demasiado entretidos para perceber que há algo real para lá do ecrã, nem que sejam as suas próprias vidas daí para a frente.
São variados os detalhes vistos de forma crítica pelo autor, do desejo de censura da sociedade americana à relação diferenciada que os dois lados do Atlântico têm com os realizadores que a moral vigente faz cair em desgraça.
Fá-lo num estilo solto e muito mais cinematográfico do que literário em que a escrita surge contaminada pela própria forma dos argumentos.
O recurso a essa técnica é facilmente aceite quando a realidade passa pelo filtro do realizador com um desejo de controlo que a vida não proporciona como a película.
Ao que parece, é um estilo que vem deixando descendência (veja-se Selvagens, exemplo recente no mundo editorial português).
Um estilo que torna a leitura rápida mesmo se não contribuir para solidificar uma verdadeira personalidade de escritor que se diferencie da de argumentista.
Garante, sim, curiosidade para os leitores com igual gosto pelo cinema.


Popcorn (Ben Elton)
Livros do Brasil
Sem indicação da edição - Janeiro de 2000
256 páginas

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Envolvido com um tema alheio

A conclusão pode ser precipitada ao fim de uma segundo livro lido, mas Stephen Booth gosta de tratar de temas que falem directamente à identidade britânica, sublinhando o confronto da tradição com a mais recente orientação social.
Se no livro anterior era a maneira como o papel do polícia era encarado pela população, aqui é a reacção moderna ao tipo de relação que o país mantem com os animais falando simultanea e harmoniosamente sobre as restrições à caça de raposas e o novo mercado gastronómico que se forma para a carne de cavalo.
Podem parecer temas difíceis de interessar facilmente o leitor português, mas usadas como são tornam a leitura surpreendente e eficaz seja para quem for.
Durante cerca de metade do livro, as considerações sobre estes temas e como eles terão sido causa do homicídio investigado não deixa notar o quanto a investigação está estagnada.
Estamos embrenhados em suspeitas, preconceitos ideológicos que a própria detective Diane Fry expressa e que nos levam a desconfiar das intenções dos mais variados envolvidos apesar de Ben Cooper vir em defesa argumentativa da elevação do comportamente da classe envolvida na caça à raposa.
Não quer isto dizer que o carácter de todos os envolvidos seja impoluto, nem mesmo do lado dos que se opõem às caçadas.
Isso só leva a que as investigações devam ser mais abrangentes, mas as próprias condições do trabalho de polícia - limitado pelos meios e pelas ideias - é que as afunilam.
Se o leitor é levado a focar-se num único aspecto ou numa única hipótese, é porque é assim que vai a investigação.
Ninguém consegue escapar às suas próprias crenças sobre a realidade que o rodeia nem à maneira mais clássica de interpretar os dados disponíveis, que é correlacioná-los.
Afinal de contas, certamente que na maioria das vezes a resposta mais óbvia é a correcta. No entanto qual a resposta mais óbvia é que o pode estar em causa.
As coincidências também acontecem e os elementos presentes no local do crime só circunstancialmente apontam em exclusivo para os caçadores que por ali perto se encontravam.
A pressão dos resultados afecta a própria polícia de uma forma que, apesar de tudo não leva a consequência gravosas como a condenação de inocentes, mas atrasa a concretização da justiça.
Stephen Booth só cometeu um erro nesta sua estratégia, a inclusão de vários capítulos de um diário de 1968 que teimam em fazer o leitor desconfiar das respostas que se buscam no presente.
Ainda assim, a maneira como a verdade sobre o crime original e as suas consequências surge surpreende os próprios detectives e, ligados a eles, os leitores.
O que eles tiveram de conseguir foi compreender a importância dos detalhes e pensar "fora da caixa" para conseguirem voltar à base estrutural de uma investigação que a torna única e independente dos sinais excessivos que contaminam as provas.
O policial está construído de forma muito sólida de forma a manipular o leitor e depois a servir-lhe um classicismo detectivesco que é sempre um prazer de acompanhar.
Tudo isto em torno de um tema que não diz nada (pelo menos na forma muito particularizada como se apresenta) aos portugueses mas que os envolve mesmo assim.


O Toque da Morte (Stephen Booth)
Publicações Europa-América
Sem indicação da edição - Agosto de 2010
356 páginas

terça-feira, 28 de agosto de 2012

A boa prática de baralhar expectativas

Ao fim de três livros é inevitável começar a compreender que Mo Hayder tem uma linha contínua para servir os seus progressos literários em torno de Jack Caffery e Flea Marley que se foca no romance atribulado que se vai desenvolvendo entre ambos.
Essa leva a que as suas presenças tenham sempre de surgir em paralelo o que leva a que passem o tempo separados – como no livro anterior – ou que a investigação acabe sempre por envolver um passo que recorra à especificidade do trabalho de Flea.
Torna-se pois num traço essencial que percorre a série de livros da autora, mas também um traço de apoio em cada livro que desaparece à medida que outros são inscritos em torno dele.
Nessa tarefa, está a verdadeira qualidade de Mo Hayder que cria estruturas ricas – e, acima de tudo, policialmente capazes – que encobrem essa armadilha que criou para si mesma em Ritual. Pois se neste livro as tarefas de ambos os protagonistas voltam a estar sintonizadas na mesma investigação, temperadas por personalidades muito distintas, ainda não encontraram a lógica harmoniosa que tinham nesse primeiro volume.
Isso prova-se pela surpresa que Mo Hayder consegue produzir quando se receia que ela tenha aderido à moda de um tema cada vez mais comum entre os policiais e os romances publicados um pouco por toda a parte – a pedofilia – ou de que se tenha embrulhado demais em elaborações narrativas deixando a segunda metade do livro apenas para “encher páginas” num estilo de thriller pouco interessante.
Na verdade, Mo Hayder volta a mostrar o quão fiel é aos modelos clássicos de policiais, dispostos a esconder os seus melhores trunfos até ao final sem terem de roubar ao leitor o gosto de encarar desenvolvimentos fortes até lá.
Começa desde logo pela maneira como a autora usa a ameaça da pedofilia – iniciada pelo rapto de algumas crianças – apenas para revirar tal premissa e dar conta de outro género de negro potencial humano, o da vingança. O desaparecimento das crianças e o que lhes terá acontecido depois é usado no estilo do terror sugerido e não nomeado, até por se relacionar directamente com acontecimentos da juventude de Caffery que muito contribuem para o definir como personagem e como investigador.
Neste caso específico afectando directamente a investigação e proporcionando mais um mergulho no ambiente dúbio que o poder atribuído a um agente policial cria socialmente.
Abordar mais longamente o tema deste caso particular é arriscar fazer revelações sobre o enredo, pelo que aproveito para regressar aos protagonistas.
O que Mo Hayder faz com Flea e Jack – à parte as funções mais perigosas exercidas por ela – enquanto protagonistas é dividir o género de progressos na investigação entre os que dependem de uma lógica ponderada que, à falta de inspiração, podem comprometer vidas (senão mesmo o desfecho da investigação) e os que dependem de uma impulsividade desajuizada que contribuem em muito para a investigação mas perigam a vida de Flea e da sua equipa.
Inseridos na investigação ficam os traços que caracterizam os dois personagens e que definem aquilo que continua a fazê-los confrontarem-se profissionalmente e atraírem-se pessoalmente.
Esta bicefalia de feitios permite complicar a investigação, tornando-a mais errática em certos momentos e fazendo-a dependente tanto da acção como da dedução. E, sobretudo, leva à explosão do confronto de personalidades funcionando dentro do ambiente de trabalho onde o falhanço parece ser o mais habitual estado de coisas.
Isso continua a levar à exploração da história contínua que Mo Hayder estabeleceu desde o primeiro volume e que continua a testar os limites do justo e do indevido entre a classe policial quando afectada por afectos pessoais.
Com tudo isto, contrariando o que o embrulho do texto nos fazia crer, Perdida é uma óptima leitura que não aceita os lugares-comuns.
Falta apenas compreender – o que também ajuda a permanecer fisgado nesta leitura – que papel vai ter o Andarilho (personagem que dá nome à saga e que é uma espécie de mentor de Caffery) no final desta história.


Perdida (Mo Hayder)
Publicações Europa-América
Sem indicação da edição - Agosto de 2011
396 páginas

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Interesse intermitente

O relato da vida de Cícero feita pelo seu secretário pessoal acaba por ser um relato da estrutura do poder em Roma e das lutas que dentro dele decorrem.
Do poder directo que a população ainda pode exercer em certos momentos ao (para já, apenas anunciado) poder de um único homem sobre todo o Império, vamos experimentar o progresso da jovem República Romana.
A evolução da narrativa segue a evolução de postos assumidos por Cícero, primeiro Senador, depois Pretor.
Isso proporciona amplas oportunidades para vermos em acção os protagonistas das várias fases – candidatura, votação, assunção do cargo – que estão envolvidas em cada acto.
A necessidade de ter mais de quarenta e dois anos ou um milhão de sestércios para poder entrar na vida política são dados inseridos com agilidade no seio dos actos mais importantes, negociações obscuras e alianças mutáveis que permitem ganhar ou perder no último momento.
A vida política é apaixonante e lança-nos na vontade de ler livros onde as personalidades de gente como César ou Crasso não estejam tão constritas a linhas gerais ou simplificadas.
É o problema do narrador ser, apesar de tudo, uma personagem longe da ribalta da República – ainda que beneficie de uma presença privilegiada como escriturário em muitas reuniões – e, por isso, não poder dar conta de alguns dos mais importantes desenvolvimentos dela. (Embora para ser franco isso seja usado por Robert Harris para gerir alguns momentos próximos do thriller com inteligência.)
Essa limitação do narrador acaba por levar a que o melhor do livro sejam os momentos dedicados à vida de Cícero como advogado em que este tem estratégias brilhantes e discursos que mereciam ter sido ouvidos ao vivo. Momentos a que o seu secretário pode assistir de forma muito próxima, colaborando na sua preparação mas sendo sempre surpreendido enquanto elemento do público.
Isto, sobretudo, na primeira parte do percurso de Cícero em que a sua moral está acima de qualquer dúvida. À medida que a sua ambição aumenta e as suas maquinações têm de servir interesses políticos, Cícero perde-se como personagem heróica de uma República a necessitar de um defensor contra a turba de ladrões em cargos de grande significância.
A leitura tem um interesse intermitente sempre que o autor perde a mão ao equilíbrio difícil entre as duas dimensões do homem – e do seu carácter – mas é quase sempre cativante no seu estilo que combina a intriga política com o ambiente tenso de tribunal.
A par disso, há que referir o facto do livro sofrer de alguns anacronismos de expressão relativamente ao século I a.C. em que se passa, embora tal não afecte sobremaneira o correr da leitura.
Já a fraca revisão, que deixou à vista gralhas e resquícios de traduções alternativas, torna a leitura morosa em certos pontos e, com isso, cansativa.


Imperium (Robert Harris)
Editorial Presença
1ª edição - Dezembro de 2006
320 páginas

domingo, 26 de agosto de 2012

Subversão respeitosa

Tinha catorze anos quando li O Diário Secreto de Adrian Mole aos 13 anos e 3/4, uma prenda que acharam cair perfeitamente num leitor completando aquela idade.
Não gostei na altura e não voltei a querer saber do personagem, mas entretanto já tinha pensado se não seria tempo de rever essa minha posição. Afinal a personagem celebrava quarenta anos de existência literária, tendo envelhecido ao longo de quase uma dezena de livros e isso deveria significar que algo de bom ali estava contido.
Este The Queen and I só veio reforçar essa ideia de haver algo a encontrar nesse livro de há muitos anos atrás. Algo só perceptível numa idade mais avançada, mais informada e mais interessada.
Aqui temos um livro que se usa a Família Real para retratar o outro lado do Reino Unido, o dos bairros  e do Estado sociais.
A Família Real deixou de o ser e terá de viver na base de um rendimento de subsistência que o Governo lhe garante - só porque ninguém passa fome no Reino Unido Republicano.
O livro tomará em mãos o direito a crítica de todo o sistema político da altura, com destaque para os erros da forma como a subsidiação era usada pelos que a atribuem e pelos que a recebem.
Uma crítica que permanece actual, tal como a da governação utópica que, por uma vez, cumpre todas as promessas que animarão o povo sem ponderação daquilo que é sustentável.
Um país à mercê das crenças ingénuas de um governo que se mostra a reunir na cozinha durante o pequeno-almoço e que diz que não haverá nem Rei nem Presidente pois cada e todo o cidadão será a figura de topo do Estado.
Sue Townsend parece reaccionária até que revele o seu golpe final. Na ânsia de dar ao povo aquilo que o povo deve ter - sobe pensões ao mesmo tempo que diminui o custo dos transportes, entre outras medidas populares mas desmedidas - o primeiro ministro endivida de tal forma o país que tem de o entregar ao seu credor, o Imperador do Japão. E logo o Reino Unido volta a fazer parte de um Império onde o Sol nunca se põe!
As conclusões que se tiram do livro dão para fazer paralelos com o Presente, sendo ainda mais interessantes quando analisadas pela informação que nos dão do Passado de uma forma humorada que está mais próxima do pensamento dito mundano.
Naquele período pós Thatcher havia pois um desejo de contrariar a severidade das medidas aplicadas a um ponto tal que se retiraria o país das mãos de uns priveligiados para o dar a outros.
O tema político ganha ascensão sobre a narrativa à medida que o livro avança e fá-lo perder uma certa graciosidade que a primeira parte tem.
Uma primeira parte mais dedicada à transição pessoal dos membros da Família Real, do contentamento de Carlos ao abatimento de Filipe.
O gigantismo que tem de ser encaixado no espaço exíguo das suas novas vidas proporciona momentos delirantes onde uma verdadeira humanização das figuras que ainda por estes dias vemos exploradas e expostas com cada vez menos respeito em aspectos das suas vidas que são perfeitamente comuns, embora continuem a ser idolatradas nos momentos em que os seus costumes opulentos fazem outros sonhar.
Há uma meritória capacidade de Sue Townsend de tornar a Família Real num conjunto de personagens merecedoras de compaixão perante aquilo que as acabam de fazer sofrer e perante aquilo que tiveram de sofrer - sobretudo a própria Raínha - no tempo em que não podiam ser figuras anónimas.
Claro que, por mais divertida que seja toda a ideia do livro, ela acaba por assentar em bases muito periclitantes. É necessário aceitar ser-se crédulo para não discutir a implausibilidade da Família Real acabar nas condições que acaba e não num feliz exílio noutro país qualquer.
Mesmo assim, resulta na maior parte do tempo pelo inevitável gosto subversivo que proporciona, sobretudo por imaginarmos que a própria Raínha terá dado uma vista de olhos ao livro e visto-se no papel ingrato de pedinchar dinheiro da Segurança Social para alimentar o seu cão ou comprar ossos no talho para cozinhar uma canja ao marido que se recusa comer.
No final, a única certeza vem do primeiro capítulo, a Raínha não acabará realmente fora do trono, nem sequer na ficção. Sue Townsend arrasta-a um pouco pelo lado menos belo do Reino Unido mas assegura-se que ela permanece a salvo no final.
Porque ela é, afinal, inglesa e, como a maioria, pode regozijar-se com a ideia de deixar de viver numa Monarquia mas continua a mostrar o devido respeito que a líder do Império atrai dos seus súbditos!


The Queen and I (Sue Townsend)
Mandarin Paperbacks
20ª edição - 1997
320 páginas

sábado, 25 de agosto de 2012

Estômago para a publicidade

Confessemo-nos desde já. Se estive a ler isto é porque sou seguidor atento da série Mad Men. E se está a ler isto é porque é seguidor atento da série Mad Men e quer descobrir se vale a pena ler o livro.
Começo, então, pela inevitável comparação para aqueles que sintam que têm locais melhores onde gastar o seu tempo.
A série tem um apelo malicioso que vem do drama e daquela personagem absolutamente inesquecível que é Don Draper. O livro tem muito menos glamour do que a série mas compensa-o com uma sinceridade de sentido crítico que não poupa nem o mundo em que se insere nem quem por lá se move. Não que isso esteja ausente da série, mas é trabalhado de uma forma mais discreta e integrada com o restante que precisa de lá estar para criar um enredo que sustente cinco temporadas (até agora).
O livro de Jerry Della Femina - um nome excepcional que alguém teria de ter inventado se não existisse de verdade - é um manual sobre o mundo da publicidade com muito menos restrições.
O seu foco são as histórias absurdas que descrevem como as pessoas se comportavam pelos corredores de uma indústria em mudança, com os "malucos da criatividade" a perturbarem a seriedade das agência seculares.
Há lições claras a serem retiradas - removendo o ambiente datado - sobre o que se deve esperar do mundo publicitário se nele se pretender estar.
E há lições a retirar sobre aquele período específico, sobre o que a série não nos pode mostrar porque afectaria o glamour que é a sua imagem de marca. Essas lições são aquelas que tornam o livro num suceder de gargalhadas sonoras - tentei conter algumas que adivinhava chegarem e não consegui, outras foram uma surpresa total até ao momento em que uma certa expressão surgia impressa.
No fundo resume-se tudo a um desequilíbrio permanente entre o emprego e a criatividade. Aqueles que mais sobem (mais ganham) tendem a estar tão amedrontados em perder uma conta que só apresentam trabalhos seguros que sejam exactamente aquilo que o cliente já tem. Deixam de arriscar e tornam-se chatos e estão mais perto de perder o emprego.
Havia que ter estômago para aguentar o receio permanente, sobretudo com tantos almoços de três Martinis a acompanhar.
Della Femina não só tinha esse estômago, como tinha estômago para continuar a arriscar e ainda vir a público revelar os dislates a que assistia de posição privilegiada.
Isso torna o livro numa preciosidade para inspirar os menos ortodoxos a atirarem-se ao mundo da publicidade mas, sobretudo, para fazer rir todos os que o lerem.
O efeito que tanto riso provoca é a capacidade de perdoar as falhas deste volume enquanto livro, visto que lhe falta uma linha narrativa consistente que interligue as várias histórias e evite a quantidade de repetições que vão surgindo.
O mais grave, para os não iniciados, é a falta de contextualização sobre o mundo publicitário daquela altura. Biografias das agências citadas e umas páginas centrais com os anúncios mais importantes entre os citados - estes da Volkswagen, por exemplo - teriam tornado o volume muito mais compreensível para um público que só sabe de publicidade por via do que a série lhe mostrou e, provavelmente, indispensável na prateleira de quem trabalha no meio.
Creio que faltou criar uma parceria entre o tradutor e um publicitário com uma sólida formação sobre as "origens" do seu trabalho para levar a edição a um outro patamar.
Estamos num momento em que a publicidade é um tema muito em foco, o interesse pela criativadade que gera a ser aumentado pela série e a ser reflectido por vários artigos que surgem de forma regular na imprensa (Diário de Notícias e i, pelo menos) ou pelo livro que a Taschen dedicou àquela época, Mid-Century Ads: Advertising from the Mad Men Era.
Por isso, os interessados - na série, no tema e no livro - estarão mais preparados e serão mais exigentes com a edição para a qual não basta um conteúdo do melhor descaramento.


O Último dos Mad Men (Jerry Della Femina)
Civilização Editora
1ª edição - Abril de 2011
256 páginas

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Tudo se esgota

Noutro Agosto elogiei Jonathan Santlofer por ter conseguido aliar o seu trabalho como artista plástico ao seu trabalho como escritor de thrillers.
Sentia-me preparado para voltar a fazê-lo com este livro em que o protagonista trabalha com a polícia fazendo retratos forenses - e, também, como detective.
Sobretudo porque a inclusão dos desenhos dos suspeitos pareciam naturais, acabando por fazer a ponte entre a leitura e um mundo onde a imagética reina.
Nem sequer se podia acusar o autor de qualquer preguiça em que o desenho evitava a descrição do mesmo sujeito, visto que o processo de descrição do mesmo por parte das testemunhas está lá à mesma.
Apercebi-me que não poderia fazê-lo a meio do livro quando as ilustrações já deixaram de ser um elemento integrante da história e passaram a ser o acompanhamento do texto.
De tal forma se dá essa transformação que, já perto do fim, no capítulo 60, de três páginas uma está ocupada com o desenho de uma mão agarrada ao corrimão de uma escada e outra com o desenho de uma sala na qual entra um feixe de luz ao abrir-se uma porta.
Não se trata somente dessa ilustração redundante. Trata-se também de encarar que Santlofer dá a impressão de recorrer sempre ao mesmo método de relacionar elementos do livro por via do desenho.
Várias das suas vítimas/dos seus culpados - dicotomia gerida com algum interesse, já agora - passam o tempo a rabiscar elementos idênticos em folhas soltas, gerando um padrão que o detective do livro pode seguir.
Parece haver uma limitação do autor - parcialmente desmentida pelo restante que faz com a trama - que tem de recorrer aos desenhos para avançar em direcção ao ponto em que os vários fios da trama se unem, tal como no outro seu livro que li e que era protagonizado por uma personagem totalmente distinta.
Tais desenhos, como vários outros representando fachadas de prédios que o detective tem de visitar, acabam por desintegrar o papel dos desenhos no livro por terem origem no autor e não na sua personagem - algo que não acontece com os desenhos forenses (e, apenas parcialmente, com os desenhos que explicam o processo de reconstituição de um rosto através do seu crânio).
Tudo porque o personagem principal recusa-se (um pouco tolamente na minha opinião) a exercitar o seu talento de forma artística, obrigando-se a produzir apenas trabalhos com uma finalidade policial.
A harmonização de todo o tipo de ilustrações com o texto corrido seria simples se o detective transportasse consigo um bloco onde fizesse esquissos dos elementos que observa enquanto, por exemplo, vigia um suspeito.
Todo o tipo de informação que poderia encontrar mais tarde nesses esquissos - e que a visão momentânea não permite detectar - fariam avançar a trama da forma e no tempo que o autor pretendesse e este acabaria com uma natural autorização para aumentar o número de ilustrações em cada livro.
Parece-me que toda esta análise seria importante - e urgente para livros futuros - se feita pelo próprio autor, até porque tal uso do desenho desvia a atenção do essencial do livro: a história.
Pouco mais apetece dizer depois de tão longamente ter tratado tais elementos. A história é interessante e bem urdida em torno de uma vontade clara do autor de fazer a denúncia do falhanço que os próprios Estados Unidos da América têm tido na atenção dada aos seus soldados após as guerras em que participam e na atenção dada aos limites que devem impor à pesquisa que patrocinam de forma a tornar esses soldados mais resistentes.
A história acaba por envolver elementos que a tornam mais interessante, o que acaba por também esconder algum exagero de caracterização do próprio protagonista, impedindo que uma personalidade unívoca se apresente.
Falo da adição que o autor faz, às capacidades de desenho de Nate Rodriguez, de uma herdada capacidade sobrenatural para visões e de uma memória infalível para todas as caras que observou.
Talvez essas sejam capacidades úteis para um desenhista, mas ameaçam tornar redundante todos os actos convencionais de investigação.
Tal versatilidade imagética acaba por esgotar os seus bons efeitos e, ao que parece, desviar a própria atenção do autor da forma mais eficaz de executar aquilo a que se propõe.


O Caderno da Morte (Jonathan Santlofer)
Editorial Presença
1ª edição - Outubro de 2011
376 páginas