segunda-feira, 31 de maio de 2010

Tempo de informação

A informação tem um enorme valor no preciso momento em que escrevo, dando inclusivamente nome à sociedade que nos rodeia.
Como tudo o que tem um preço, a informação tem, portanto, um peso no ser humano que a manipula/opera/usa/busca.
A informação a que uns tiveram mais direito do que outros - e já falo do livro neste momento - tem mais peso do que valor.
Olhar o futuro é excitação certa, expectativa de usar o conhecimento que outros não têm para se enriquecer ou conquistar posição.
Só que esse futuro é mais uma grilheta, levando obcecado aqueles que olharam o futuro e descobriram nele notícias menos favoráveis.
Viver tentando contrariar uma informação - ainda para mais incompleta e impossível de desvendar - durante anos a fio é uma obsessão que anula a vida presente.
Mas o seu contrário, viver na crença de que a informação que se tem é inevitável tem um efeito semelhante, anulando o significado de qualquer decisão tomada.
A informação em excesso é a fonte de anulação do livre-arbítrio e, daí, ser muito mais prejudicial do que se julga.
Daí que vivamos - e já não estou, entretanto, a falar do livro - numa era de informação que nos reduziu à "aldeia global" onde cada um vive obcecado em conhecer e divulgar a informação de todos os que o rodeiam e, no limite, de si mesmo.
A era da informação é o ponto ideal para a coscuvilhice e aqueles que julgam ganhar alavancagem contra outros através da informação estão apenas a colocar-se numa prisão ilusória de dados sem uma eventual concretização real.


















Flashforward (Robert J. Sawyer)
Saída de Emergência
1ª edição - Março de 2010
288 páginas

domingo, 30 de maio de 2010

Esforço

Escrito quando a autora tinha uma idade muito jovem, este é claramente um livro de uma rapariga desejosa de ser escritora.
Um desejo que não deve ser reprimido, que é saudável e pessoal e, por isso mesmo, impossível de suprimir.
Mas ao ser editado, é necessário ter uma visão mais consciente da materialização desse desejo.
A autora começou o livro em busca de uma escrita erudita para os seus personagens mas muito rígida. Com o tempo a escrita tornou-se mais fluída e menos consciente de si mesma. O percurso temporal do livro fica à mostra e seria necessário rever - e reescrever, provavelmente, o seu início.
A autora mantem-se agarrada a modelos que conhece muito bem e que a fascinam. Modelos ainda muito simples e limitados, seguros mas onde é impossível arriscar e construir algo distinto e rico.
Este é um primeiro esboço de uma possível carreira como escritora. Um esboço que deve ser revisto à luz de uma maturidade e servir, acima de tudo, de rampa de lançamento para esboços cada vez mais sólidos.
Se a autora não tem distanciamento suficiente para isso, então alguém o teria de ter por ela.
O esforço resultante do desejo não é, nunca, um mau esforço, mas também não é um esforço de resultado irrepreensível.




















O Reino de Nurver
(Sara Machado)
Papiro Editora
Sem indicação da edição - Junho de 2007
216 páginas

sábado, 29 de maio de 2010

Perdidos no onirismo

Em cada conto de Henrik Nilsson há uma busca sistemática pelo onirismo que uma pessoa que habita a solidão descobre quando se perde, acidentalmente, no espaço da vida onde se intercepta com o "outro".
O solitário não pretende nem sabe como superar a sua condição, daí que seja apenas quando um evento os leva a encontrarem-se num espaço que lhes é desconhecido que eles percebem o que ainda lhes pode ser dado a descobrir.
Ao perderem contacto com o local, com o hábito ou com a obrigação que têm, as pessoas encontram pequenas maravilhas que a realidade desvenda apenas daqueles que têm já o tempo dado por perdido e então o podem recuperar e apreciar.
A poesia do quotidiano só se dá a quem não sabe como sonhar, por viver isolado em si mesmo.
Mas cada conto de Henrik Nilsson encerra também a estrutura sistemática do desânimo final, para todos aqueles que vivem o recém descoberto onirismo, de ver tudo desaparecer de novo.
A realidade desconhecida que por um momento os albergou volta a expulsá-los. Ninguém se salva pela magia dos outros, por isso o refúgio para os que se perdem da sua solidão é sempre temporário.
Trata-se de uma amostra do que ainda podem resgatar para si próprios se decidirem descerrar o véu da solidão.
Cada conto de Henrik Nilsson é uma aventura de descoberta e perda, miraculosamente passada nos espaços físicos de Portugal olhados por um sueco que sabe como manobrar as palavras e as personagens nesse mesmo espaço.


















Um Piano em Sesimbra (Henrik Nilsson)
Editorial Presença
1ª edição - Janeiro de 2010
128 páginas

domingo, 23 de maio de 2010

O moderno passado

A Sala de Vidro foi construída apontada à modernidade, a imensidão entrando no espaço que o corpo humano ocupa, simples mas aberta a tudo o que a rodeia.
A Sala de Vidro pretende acolher e proporcionar o infinito a quem nela habita, mas como todas as construções, é um espaço limitado.
A Sala de Vidro tem, portanto, como todas as casas, de conter as vidas no seu interior, ainda que as faça olhar o Mundo como a sua casa, ela serve como exibição daquelas vidas.
A sua modernidade termina onde a essência descarnada do conceito de "casa" acaba e, por isso...
Pensada como habitação familiar acaba por se tornar num laboratório ao serviço do Nazismo.
Pensada como espaço para a expressão do talento humano acaba por se tornar num ginásio para crianças com dificuldades motoras.
Pensada como revolução arquitectónica de futuro acaba por se tornar num museu daquilo que outrora foi.
A Sala de Vidro nasce para ser o absoluto tornado construção mas parece estar sempre a conter o que a rodeia, a tornar-se numa estagnação da realidade, não só ao nível da sua função global, mas também da função particular - uma casa cujos donos prometiam ser uma casa despida de segredos e que depois se torna o palco de traições e casos amorosos escondidos.
A Sala de Vidro tem todas as possibilidades de futuro inscritas em si, mas serve depois como ferramenta de um retrógrado pensamento.
A Sala de Vidro é atacada pela incompreensão tal como é amada pela sua singularidade. Trata-se de uma obra de arte fustigada pela existência humana mas que, de uma forma ou de outra, lhe sobrevive.
A Sala de Vidro torna-se assim no símbolo mais preciso de um século XX em que a discrepância entre o avanço tecnológico e o retrocesso humano estiveram sempre de mãos dadas; o símbolo de um país que se perdeu, de forma sistemática, nas mãos dos que não sabiam valorizar o que esse país lhes apresentava de moderno.
A Sala de Vidro é o local periclitante, onde o vidro promete tudo o que dela se alcança mas também ameaça ruir com facilidade.


















A Sala de Vidro (Simon Mawer)
Civilização Editora
1ª edição - 2009
416 páginas

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Manchetes da vida

As vidas que antes, durante e após o 25 de Abril fizeram Portugal estão muitas vezes por contar.
Os títulos que os jornais recordam e as memórias colectivas não fazem a totalidade da História, pois cada história individual é mais preciosa aos que viveram o período do que as ideias genéricas, por mais importantes que sejam.
Os relatos individuais, mais repletos de lirismo e de tontices, formam uma história mais peculiar da realidade das décadas da segunda metade do século XX.
Mais peculiar e, a certo ponto, mais honesta, onde os erros e as opções afectam a realidade particular daqueles que traçam o retrato mais comum do povo português.
A normalidade é a associação dos grandes momentos de um país aos pequenos momentos de uma pessoa.
A importância dos pequenos eventos é maior do que a dos grandes, não só porque traçam uma história mais sentida a cada indivíduo, mas porque é através deles que alguém pode partilhar o que representaram os cabeçalhos de jornal que de ano a ano retomam no aniversário do 25 de Abril.
Os títulos de jornais só contam uma história limitada, importante para passar a idealogia e a importância do que sucedeu, mas que muitas vezes não passam a emoção dos tempos a quem não esteve lá.
Filomena Marona Beja escreve precisamente o oposto, as histórias individuais que nos tocam como se fossem nossas e que acabam por retratar mais a fundo a realidade que, pela distância temporal, não poderíamos conhecer bem até aqui.


















Bute daí, Zé (Filomena Marona Beja)
Sextante Editora
1ª edição - Março de 2010
256 páginas

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Amor cínico

Um livro sensível sobre o amor pode esconder uma tenebrosa teoria sobre tal sentimento. Ou, senão tenebrosa, pelo menos lúgubre.
O amor é o sentimento mais extraordinário e mais inspirador do mundo, capaz de tornar os adolescentes do livro em "almas velhas", capaz de fazer de um velho homem um inesperado ladrão de campas.
Só que o amor é, como todos os sentimentos, nascido de circunstâncias irrepetíveis, e mutável perante as alterações ao tempo que o viu florescer.
O que este livro diz, de forma velada, escondido numa história de amor que deixará muitos comovidos, é que o amor é mais belo quando é vivido brevemente e, à sua maneira, nunca plenamente concretizado.
Este amor, completo por ser sentido mas incompleto para aqueles que o sentem, preserva-se, vive como ideia aperfeiçoada e incorrupta, é eterno.
Na história de amor sofrido de um rapaz que vê a namorada morrer de leucemia, depois de ter ajudado o avô a roubar as cinzas da mulher com quem não se pode casar para com ela ser enterrado, há pois um certo efeito subversivo.
O de fazer de um belo amor apontado à eternidade a evidência de que o amor apenas se torna eterno se não for vivido. Ao ser vivido, mesmo da forma mais bela possível, torna-se em algo que não se pode nomear da mesma forma.
O livro, afinal, é um romance tão eficaz para os românticos como para os cínicos, escrito com sentimento mas sem pieguice, terno mas criticamente perspicaz.
Será por isso que vendeu tanto, por ter sabido dar a todos aquilo que querem (ou não querem) ver no amor?


















Um grito de amor desde o centro do mundo (Kyoichi Katayama)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Novembro de 2009
200 páginas

segunda-feira, 3 de maio de 2010

A moral do sexo

Há altos e baixos neste conjunto de contos de Miguel Almeida.
Alguns dos contos não passam de elaborações desnecessárias em torno de anedotas - e o título "Piadinha a preço justo" denuncia-se bem - que já Juca Chaves contava há várias décadas atrás com verdadeira irreverência.
Outros, pelo contrário, são pequenos momentos de perspicácia, como o tríptico em torno de Eduardo Censor que questiona não só o que é a pornografia mas também o nível pornográfico a que chega o fanatismo daqueles - muitas vezes ditos sóbrios intelectuais - que se batem pela Arte e contra a Censura.
Felizmente são mais os contos que se enquadram no segundo caso e menos os que se ficam pelo primeiro caso (quase todos, iniciais, quer no livro quer no tempo de escrita).
Miguel Almeida vai com este livros questionando as ideias convencionais e instituídas sobre a sexualidade e a moralidade local, não poucas vezes indissociáveis.
Seja o confronto da obsessão masculina pela performance com os lugares-comuns de atitude para o trabalho na pornografia ("Quem quer e pode ser uma estrela porno?") ou o encandeamento que as liberdades individuais muitas vezes falham em ter para com a visão da mulher e da sua sexualidade na sociedade ("Orgasmos mal comportados"), não deve haver dúvidas que Miguel Almeida lança reptos para discussão de forma dissimulada e inteligente, cativante mesmo.
Fá-lo como um jogo, lançando discretamente as bases de reflexão como se o seu público fosse ainda infantil no que toca a estes assuntos. Mas aqui essa atitude não vai mal, pois permite que ninguém tenha de admitir as suas debilidades nestas áreas.
Esse jogo vê-se logo na escolha dos nomes, Eduardo Censor é censor, Francisco Manso é "corno" e deixo para adivinharem o que se passa com Ana Brígida.
O sexo e a moral podem ser divertidos e andar sempre juntos. Se calhar já era altura de alguém o ensinar de forma generalizada.


















A cirurgia do prazer (Miguel Almeida)
Esfera do Caos
1ª edição - Abril de 2010
192 páginas