quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Nada supérfulo

Só quando está prestes a morrer decide este homem escrever o diário do que foi a sua vida.
Tem duas semanas para viver e trinta anos para contar. A tarefa parece mais difícil do que é, mesmo que nem pensemos nos anos da infância que pouco deverão contribuir para o volume do caderno.
Parece mais difícil pois este é o homem que afirma que a sua vida foi inútil por inteira e, portanto, deverá ter pouco para contar.
O que ele afirma é, exactamente, que só tem a contar que foi supérfulo toda a vida e dá um exemplo com que quer provar isso mesmo.
O exemplo? Uma história de amor em que ele não poderá ter sido bem sucedido. Afinal, está a morrer sozinho, entre censuras da velha enfermeira.
A dolorosa história de amor ou, se preferirem, o melodrama de salão de baile de província, decorre em torno dele sem que ele consiga descobrir qualquer papel determinante para si próprio.
E ainda assim é essa história que lhe ocupa as duas semanas, a vida reduzida àquela única lembrança.
Porque o amor é o mais importante da vida e porque, inconcretizável, leva o autor do diário a contrariá-lo e à prevalência que tem sobre os trinta anos em que se manteve ausente.
Logo aí, de tanto escrever para provar que foi, de facto, supérfulo - ele próprio e o amor - deixa-nos uma lição de como encarar a realidade e de como lidar com o amor.
Assim, escrevendo, ele contraria a sua própria tese, legando um texto de importância aos que estão para chegar a esse momento amoroso e, inocentes e tolos, cair no mesmo erro de esgotar o essencial da vida logo ali.
Ainda que não se concorde que este relato é uma lição, o texto que é o da sua vida, faz-se ler com ardor do início ao fim.
O prazer do texto que ele cria, da história romântica contada com a mestria que distingue a Literatura do romance de cordel, tem já direito a deixá-lo reconhecido como homem algo mais do que supérfulo.
Como o seu amor que revive nos últimos catorze dias dos seus trinta anos.
Claro que o protagonista é apenas uma personagem, a sua existência supérfula apenas fruto de imaginação e considerações teóricas que o tomam por real para melhor servir a sua abordagem.
Por oposição, Ivan Turguéniev foi bem real e é um magnífico escritor e de quem este pequeno texto é tão belo como qualquer outro maior e mais importante.
O seu talento facilita que se veja vida real no texto e incentiva que se viva o livro sem barreiras racionais.
Magnificamente traduzido e editado, um livro que não será essencial mas que é apreciável e nada, mesmo nada, supérfulo!


















Diário de um homem supérfulo (Ivan Turguéniev)
Arbor Litterae
1ª edição - Julho de 2010
120 páginas

Sem comentários:

Enviar um comentário