terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Medir a importância de cada um

Ardabiola é o nome de uma planta capaz de curar o cancro.
Há um breve assomo de ficção científica em Ardabiola, mas do que verdadeiramente trata é do valor do ser humano.
O criador de Ardabiola vive na dúvida de qual é o seu verdadeiro valor.
Ele pergunta-se "Serei eu a pessoa mais importante do mundo?", assim, sem mais nem menos.
Afinal ele descobriu a cura do cancro.
Mas as pessoas que lhe atravessam o caminho, ironica e, por vezes, mesmo burlescamente, aumentam-lhe as dúvidas.
A rapariga que ele aborda no eléctrico, pergunta-lhe se ele conseguirá travar a guerra e os efeitos da bomba.
O pequeno rapaz de quem ele terá de tomar conta para ir ao funeral do pai tem subitamente, na casa de banho do avião, a maior missão do mundo, a de conseguir cagar na sanita pela primeira vez.
E os três jovens que o assaltam dão à sua vida o valor dos jeans com que querem ficar.
O que aqui se interroga é o valor intrínseco e extrínseco de uma pessoa.
Na visão global, será a sua cura importante se o mundo for destruído?
O seu valor real aos olhos dos outros não é maior do que o da necessidade fisiológica mais primária ou do que o desejo irracional.
Só um (grandioso) poeta poderia ter interrogado assim o leitor, de forma tão irónica e despojada, sobre o sentido da vida ao mesmo tempo que constitui um subtil retrato da Rússia de 1984 que pode, quase literalmente, ser transposto ao tempo presente.

Em nota final, não posso deixar de recomendar que procurem encontrar (com um amigo ou um alfarrabista) o livro - com disco de vinil - Ievtuchenko em Lisboa, que faz transcrição do brilhante recital que deu em 1967 no nosso país.
Como para isso acontecer será preciso uma boa dose de sorte, passem pelo blog Canal de Poesia para lerem um dos seus poemas.


















Ardabiola (Ievgueni Ievtuchenko)
Difusão Cultural
1ª Edição - Janeiro de 1990
144 páginas

domingo, 22 de fevereiro de 2009

O Mito maior do nosso Portugal

O benefício da recente onda de edições de bolso está no encontro que se propicia com algumas obras que noutros formatos dexaríamos esquecidas.
Esse é o caso deste Inês de Portugal que eu tardava em ler.

Não sou um leitor ávido de João Aguiar, confesso desde já.
Há na sua escrita uma atenção demasiado académica à palavra que retira muita da força às frases e, consequentemente, do ritmo à narrativa.
Mas este Inês de Portugal surpreende por ser quase a antítese dos outros.
Talvez por se tratar de um livro baseado no argumento que escreveu para o filme de José Carlos Oliveira (cuja capa do DVD se apresenta na imagem) e mais curto do que é habitual nele.

A verdade é que João Aguiar tem aqui um livro muito mais escorreito e muito mais emocional.
Um livro onde a intriga palaciana e a paixão de Pedro pela "Rainha por Amor" se insinuam tão profundamente um no outro que revelam a sua visceralidade.
Notável é o domínio da personagem de Pedro, que vagueia no seu próprio interior entre a cega loucura da devoção a Inês e a absoluta objectividade da noção de justiça.
Mas, acima de tudo o resto, na memória fica a magnífica e terna descrição da apaixonada primeira noite de Pedro e Inês. A paixão e a delícia dessa cena é perfeitamente palpável.
De tal forma que concluímos que o mais nobre nome dado a Inês de Castro foi o de "meu amor" na voz de Dom Pedro.

Convem, no entanto, lembrar, que a leitura deste livro não pode resumir o conhecimento de ninguém daquela que é certamente a mais bela história de amor da História portuguesa.
As liberdades sobre a vida de Dom Pedro chegam aqui ao ponto de manter relações homossexuais - e noutros livros, já Dom Pedro havia copulado com a sua égua.
Por isso deixo a recomendação para que leiam Inês de Castro (Maria Pilar del Hierro), Inês de Castro (Faustino da Fonseca) e A Rainha Crucificada (Gilbert Sinoué).

Uma última nota, sobre a qualidade gráfica deste livro, que se estende a toda a colecção Bis.
Podem verificar isso mesmo no blog da colecção: http://bisleya.blogs.sapo.pt/


















Inês de Portugal (João Aguiar)
LeYa/Bis
1ª Edição - Setembro de 2008
112 páginas

Da condição (extraordinária) da mulher


Sexodependentes é um título de marketing (o título orgininal, pelo contrário, lança a questão de forma muito mais interessante, Sexoadictas o amantes?) que pode ser apelativo a muita gente mas igualmente redutor para quem espera um ensaio sobre o tema. Mas se tiver sido - como a mim - o subtítulo que atraiu o leitor para este livro, então não há desapontamento possível.
Temos aqui a introdução à vida de 20 extraordinárias mulheres (a vigésima primeira é um pedaço de ficção da autora e perfeitamente dispensável ao livro) que viveram de forma descomprometida a sua própria essência, traduzindo-se ela como se traduzisse.

Vinte mulheres que não são sexodependentes, mas antes figuras radicais do seu tempo, vincadamente singulares e que vivem segundo regras que apenas elas sabem definir.
Quem ler este livro (ou deverei dizer, os homens que lerem este livro?) ficará com um pequeno entendimento da realidade feminina e, em particular, de como estes exemplos forjaram mentalidades pela força da sua própria satisfação.
O desejo que nos fica é a de reencontrar cada uma destas vidas o mais brevemente possível, em biografias extensas e dedicadas, pois serão certamente relatos dignos da mais notável Ficção.

Não que estas mulheres sejam exemplares ou desprovidas de idiossincrasias, mas também a realidade assim o é e assim nos deve levar a reflectir sobre as suas evoluções.
Num mundo onde o desejo feminino ainda é um tabu - basta observar a timidez Hollywoodiana no que toca a esse ponto - este livro é uma inusitada prova de lucidez, mas também muito mais do que isso.

Deixo-vos um dos pedaços da "realidade que supera a ficção" da mais bela e poética ironia.
Isadora Duncan (na foto), que só conduzia automóveis descapotáveis desde que os seus filhos haviam morrido afogados no interior de um carro caído ao rio, entrou no seu Bugatti e disse aos amigos "Adeus amigos! Vou para a glória!" e logo depois o lenço que levava prendeu-se no eixo da roda e partiu-lhe o pescoço.
Vibrante e radical até na morte!



















Sexodependentes - 21 Histórias de mulheres radicais (Paula Izquierdo)
Paralelo 40
1ª Edição - Junho de 2008
240 páginas

Nota sem intenções

"I would prefer not to." - Bartleby


Para quem quer ler muito, como eu bem quero, este blog é uma incongruênia pois apenas serve a uma perda de tempo escrevendo o que não é essencial.
Mas como os meus humores são tão insondáveis como da personagem de Melville, deu-me para escrever sobre livros e outros materiais legíveis.
Serão pequenas reflexões que faço para mim mesmo, contra a minha própria falta de memória e a favor da dignidade dos livros, mesmo daqueles de que possa vir a desistir a meio.
Não espero que alguém goste do que escrevo. Não espero que alguém leia o que escrevo. Não espero que alguém saiba que escrevo.
Eu estou aqui para mim mesmo, quem achar que consegue desfrutar disso mesmo, seja bem vindo e fiquem desde já com o meu sincero pedido de desculpas.
É que, afinal de contas, vou roubar-vos tempo aos livros que deveriam andar a ler!