quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Para uma degustação moderada

Os leitores que gostam de vinho vão dar por si a sentir na saliva que as suas glândulas produzem o sabor dos vinhos sobre os quais vão lendo, tentando preservar na boca o néctar que as palavras recordam.
Este é um livro para esses leitores, que já chegam com o paladar aguçado e para quem um vinho nunca termina com a garrafa vazia ao fim do jantar.
Dando atenção à História dos vinhos, mas aproveitando algumas histórias dos vinhos pelo meio, João Barbosa faz a sua declaração de amor ao néctar retribuindo com um documento permanente o prazer momentâneo que cada garrafa lhe traz. Uma arte em nome de outra.
Nota-se que o objectivo é mais documental do que lúdico, nem que seja pela minúcia de incluir declarações de alguns entrevistados que sabem ainda mais do que o autor e que ele bem fez em partilhar com todos.
Daí resulta uma certa seriedade a que nem mesmo os faits divers conseguem fugir quando pediam uma pena mais solta para se escapar em direcção ao tom mais humorístico que os episódios menos abonatórios mereciam.
Digo eu, sem ser um especialista, que a realização de um vinho é uma arte merecedora de toda a dignidade, mas sendo uma arte do prazer também não lhe fica mal passar pela lama uma ou outra vez.
Queixo-me por ter ficado mal habituado e esperar que estas histórias - que também fazem História de um Portugal que, neste campo, se ergue acima de muitos outros países - fossem mais saborosas e menos detalhadas.
Quando abrisse a próxima garrafa de um destes vinhos queria que o seu primeiro travo viesse acompanhado da memória das pequenas loucuras que não podem ser engarrafadas mas são indispensáveis ao sabor daquele vinho. A informação precisa serve melhor a consulta bibliográfica do que a degustação permanente ou o fácil relato aos convivas.
Parece-me justo dizer, dado que os breves relatos deste livro me foram acompanhando divididos por várias noites , que  vale mais a prova moderada para que os efeitos nocivos da acumulação sejam menos evidentes.
As histórias de João Barbosa acabam por recordar o sermão de um avó aos seus netos demasiado novos tentando passar-lhes a noção do peso da família. E o que se queria mesmo era que se parecessem com aquelas partilhas que entrosam avô e neto revelando os momentos menos compostos do primeiro... possivelmente de volta do primeiro copo de vinho que o jovem prova na sua vida!


Grande Reserva (João Barbosa)
Oficina do Livro
1ª edição - Setembro de 2011
236 páginas

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Escrever apesar da realidade

Talvez seja mera coincidência, mas para o leitor que casualmente faz o seu balanço de leituras é uma facto a assinalar que dois livros com origem nas Letras Espanholas acabem por reflectir sobre a linha que une a realidade e a ficção de um escritor.
No caso de O Dois Amigos tratava-se do avanço da vida ao ponto em que se torna indissociável do processo de escrita e, como consequência, a narrativa de feitura do livro entrelaça-se com a narrativa (re)criada.
No caso deste Verão trata-se do seu oposto prático, versando sobre um escritor que mexe com a narrativa da realidade para que tal desvende a narrativa que depois escreverá.
Se aqui o livro vem apenas depois, quando a realidade já está influenciada, não deixa de ser talvez mais acentuado o grau de abstracção em que vive o escritor.
A atitude do escritor aqui passa por escrever um "romance na realidade", ou seja, por lançar na vida de outros as bases do que poderáser um desenvolvimento romanesco que ele possa relatar assim fugindo ao bloqueio que o aflige.
O seu método de eleição é o envio de cartas em nome de uma figura há muito desaparecida do convívio do seu grupo de amigos.
Ele lança essa pedrada na existência pacífica do seu grupo de amigos porque só nele se encontra em posição privilegiada para obter a informação sobre progressos que ficariam escondidos se (como no primeiro teste que fez com o esquema) as pessoas usadas como peões fossem estranhos.
A total desconsideração pelos sentimentos alheios mede-se pela utilidade com que ele os vê, importantes no seu foro afectivo mas sacrifícios válidos ao que é, no final, o seu único estro e a única existência a que deve a sua lealdade: a escrita.
Aliás, esse jogo de moldagem é de tal forma egocêntrico e submisso que falha em ver as hipóteses de falha que todo o plano tem.
Crendo que todo o desenlace se revelará sempre, não espera que haja independência e privacidade. Para ele a realidade é já o seu cenário e os seus companheiros são as suas personagens.
Muito menos mede consequências que se concretizam sempre que o passado mexe com a construção pacífica que as pessoas fazem do seu passado para desembocar num presente satisfatório (no mínimo).
O acto de escrever como pulsão maníaca mas de uma falsa elevação racional torna-se aqui catalisador dos dramas reais. Porque a narrativa da realidade não se entrelaçou na narrativa ficcional, antes acabou perturbada por esta última.
Será injusto centrar toda a crítica em tal tema - de uma brilhante invenção ainda que nem sempre com uma concretização condizente - quando o autor tratou de construir um retrato de grupo que reflecte no preenchimento dos espaços em branco do passado privado e do Passado Histórico.
Um preenchimento que também se serve de formas de ficção pois, afinal, todas os pequenos apaziguamentos de consciência começados por Ele deve estar... são irrealidades confortáveis que transformam o entendimento da realidade sem dar conta das suas eventuais consequências.
Por esse método, mesmo se não tão descaradamente, todos os membros do grupo são em parte como o escritor no seu seio.
Só que, a fechar o romance, Manuel Rico lança a pista de um exercício de metalinguagem total que lança pistas para uma culpa do próprio leitor e das suas exigências também egocêntricas feitas ao autor para que este forneça novos temas e melhores ideias.
As pistas denunciam também que este pode ser, eventualmente, um exercício verídico até certo grau e a mera hipótese de tal é suficiente para reforçar o efeito sobre o leitor que sai com medo do seu papel nos desígnios a que o escritor submeteu as suas personagens... os seus amigos?


Verão (Manuel Rico)
Minotauro/Edições 70
1ª edição - Fevereiro de 2011
304 páginas

domingo, 27 de novembro de 2011

Uma vida a preservar

Esta é a história de um pequeno árabe nascido da tragédia, habitante da realidade mais inóspita que um país civilizado tem para mostrar.
Um rapaz que, mesmo assim, vive demonstrando todas as melhores qualidades que um ser humano pode possuir.
Dignidade, fidelidade, coragem, perseverância. Todas nascidas dentro de si e não transformadas pelo mundo, mostrando que até um rapaz mal nascido pode ter direito a um ambiente propício.
Propício para ele e não para a sociedade, visto que é uma velha prostituta judia que o alberga a troco de dinheiro. Mas o que ela lhe incute e o que ele aprende a sentir por ela tem uma elevação que poucas vezes uma educação institucional consegue transmitir.
Ele relata a sua vida a alguém que, descobrimos bastante tarde, pertence à “pequena burguesia”, uma classe priveligiada que acaba por se comparar muito ao próprio leitor, que certamente sempre viveu em condições melhores do que aquelas relatadas (ou nem teria acesso a livros).
O relato revela um olhar casualmente profundo sobre a vida, com tanto a ensinar que se torna difícil esconder as emoções fortes que gera.
O que ele tem para contar da vida que nos causaria pena e das pessoas que nos causariam asco está repleto de uma combinação surpreendente de sabedoria e ternura!
Uma bondosa sabedoria que lhe nasce dessa conjugação de aparência impossível entre os poucos anos de existência e os muitos sofrimentos de vida. Que nasce de ser uma criança quem vive o pior que a Humanidade e a Natureza guardam para o ser humano e, com isso, encarar, pensar e falar da realidade com uma honestidade desarmante e incensurável.
O olhar é puro e o seu desconhecimento da aprendizagem social faz dele um entendido profundo da entida
Sendo criança, é também o seu apanágio o amor incondicional pela figura materna que lhe coube em destino. Apanágio que na idade adulta rapidamente se perderia, substituído por um triste desprezo cínico que não sabe separar as circunstâncias externas da essência das relações criadas.
Pelos olhos dele a velha prostituta torna-se para nós numa admirável figura que todos deveríamos ser capazes de amar como o pequeno árabe que até teria razões graves para se apartar dela.
Todo o relato é uma biografia que tenta mostrar àqueles privilegiados que o podem acolher para o futuro como ele lhes chega e, também, persuadi-los de que merece um pedaço de boa sorte na vida.
Mas o seu efeito mais convincente e, até, devastador para as visões mais pedantes e imutáveis sobre a vida é o de que deve ser preservado o seu estado de alma que venceu sobre todas as adversidades vale mais para o futuro - para a vida de todos à sua volta - do que o conforto financeiro.
Romain Gary usou para o relato uma linguagem perfeitamente apropriada à personagem que a usa e que, pela sua origem comum e pela sua falta de educação, deveria estar empobrecida.
O contrário é que é verdade, com um uso tão original e inteligente das limitações que a Língua Francesa (entrevista por via da tradução, claro) que lhe dá uma expressividade comparável à de qualquer uso eloquente da vastidão linguística.
Mais ainda, abre várias perspectivas de uso da língua, de criação de hábitos e recursos no seio da mesma, de manipulação orgânica que a torna mais sentida e mais vivida - assim adicionando à capacidade tocante do discurso.
Talvez a comparação roce o exagero, mas tão virtuoso e expressivo uso da Língua pode situar-se lado a lado com a inventividade com que Anthony Burgess dotou a sua distopia.
Assim caminho para a inevitável conclusão: tanto quanto é comovente, este é um livro fascinante. Um trabalho de filigrana literária inesquecível que deveria ser reapresentado a cada nova geração.
Não vou ceder à tentação fácil de iniciar uma ordenação das leituras que preencheram os últimos meses. Vou antes dizer que se há um livro que me apetece comprar em molhada de forma a transportar sempre um exemplar comigo sabendo que teria facilidade no gesto de o distribuir tanto a um velho amigo como a um conhecido de ocasião.
Estou em crer que não se dever permitir a nenhum leitor que regresse a casa sem Uma vida à sua frente.


Uma vida à sua frente (Romain Gary como Émile Ajar)
Sextante Editora
1ª edição - Janeiro de 2011
184 páginas

domingo, 20 de novembro de 2011

A viagem e a fuga

Uma mesma personagem para três viagens em que se alteram cenários, idades e acompanhantes, mas onde a evidência  esencial se mantém: o viajante não é realmente capaz de viajar.
Viajar como o acto de se mudar do seu conforto próprio, do sedentarismo existencial que lhe conforta a vida, mas também a manieta.
Ele parte sozinho mas o seu primeiro destino é sempre ao encontro de pares viajantes que preencham o vazio da realidade que assola Damon.
Ele quer construir relações como não consegue manter na vida quotidiana. Quando em movimento obrigatório por um mesmo caminho, Damon quer acreditar que essa condicionante, umas vezes casual, outras forçada, chega para gerar uma verdade emocional entre ele próprio e de quem força o força a dele ser dependente ("O Seguidor"), de quem lhe propõe um futuro emocional para lá da viagem  ("O Amante") ou de quem a ele se agarra egoisticamente ("O Guardião").
A sua falta da inata compreensão que num regime de viagem, contra a imensa possibilidade geográfica que tem pela frente está a estreita possibilidade de relação humana.
Confinado a essas relações que, pelo contexto, são mais intensas e mais perecíveis do que num ambiente normal, ele vive uma ilusão que se desmorona sempre numa solidão que retorna sem excepção.
Cada uma das viagens fica por concluir porque cada uma das relações é abandonada a meio. Damon não se deixa submeter, não se permite prolongar um vínculo, nem se torna numa figura confiável.
Todos esses papéis que, experenciados por ordem, seriam sintomáticos de um amadurecimento acabam por ser estágios experimentais a que Damon só acede por os saber breves. E mesmo condenados a terminarem rapidamente, ele foge deles mais cedo.
Não fossem por esses períodos de viagem e nem se saberia que Damon testa uma condição humana para si mesmo.
Sente-se que, entre viagens, não haveria realmente nada a contar. As páginas vazias estão assim porque nada haveria para as preencher.
Só em viagem parece que Damon se consubstancia, preenchendo a quota de relações humanas que, naturalmente, deseja de tempos a tempos mas que, também naturalmente, é incapaz de acolher em si.
A solidão é o seu destino, um destino escolhido. Afinal, Damon não suporta as outras pessoas. Nem que o moldem, nem que o queiram, nem que o enraizem.
Senão veja-se como situações que para outras pessoas seriam marcas inesquecíveis (de culpa, provavelmente) - o abandono de um companheiro no meio de um país desconhecido, o abdicar da possibilidade de um amor e a longa tutela de uma amiga suicida no hospital - se mostram como memórias difusas, prestes a partirem para sempre.
O relato que Damon faz das suas três viagens está sempre mesclado - num jogo difícil mas muito bem concretizado - entre as primeira e terceira pessoas.
Assim se torna evidente o quanto o distanciamento dos anos, senão apenas da própria forma de vida que Damon escolheu para si, tornaram a figura que esteve nessas viagens uma outra que a figura actual reconhece apenas como um narrador distante.
Um narrador que cede, por vezes, a uma emoção ou um apontamento que com ele ficou, que ainda reconhece como seu e não como o de uma criação sua. Aí a sua voz lhe foge para o "eu" em vez do "ele".
Porque, mesmo as experiências de que se foge deixam sequelas na realidade pessoal, confirmando que conseguiu preencher-se do Sentir nas viagens que efectuou, o que lhe dá o poder de se satisfazer com o ressentir na sua vida afastada dos caminhos.


Um quarto desconhecido (Damon Galgut)
Alfaguara / Editora Objectiva
1ª edição - Maio de 2011
240 páginas

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Implausível

Começo a crítica por um detalhe que será indiferente para o conteúdo do livro mas que raramente o é para os leitores.
Trata-se da capa e aquilo que sobre ela direi será, provavalmente, contestado pela maioria dos leitores cuja opinião favorece este livro.
A capa é demasiado sugestiva do universo do "romance feminino" que tem padronizado a abordagem do design de tais edições.
Só a um segundo e mais atento olhar é que se reconhece a intenção de usar as cores para definir um universo de terror com o cenário a esbater-se para o sépia e o vermelho (que deveria ser menos vivo e mais vermelho-sangue) em evidência.
A degenerescência da capa - com um estilo de letra que acresce ao efeito perverso de vender um implícito romance - é grave porque não se aproxima do teor negro da abordagem a lendas antigas e crimes modernos.

Falando agora do livro, admito sem delonga que está bem escrito, que se lê com desenvoltura e que tem uma história que, no seu todo, é muito sedutora.
No entanto isso sente-se se nos deixarmos entrar na leitura sem atender à sua execução. Suponho que se trata de aceitar aquilo que há quem apelide de "entretenimento com o cérebro à porta".
Ou seja, estou a fazer estes primeiros e positivos comentários ao livro olhando para ele de maneira distante e benévola.
Aquilo que se passou durante a leitura do livro foi muito diferente dessa sensação de imersão num universo alheio.
Tanto a questão da plausabilidade como a da mera construção do livro estão sempre a vir ao de cima, a fazer-se notar pelos piores motivos.
Há bastante que se podia apontar nesses dois campos, mas acho que a peça central do livro - a história de três irmãs mantidas prisioneiras - serve melhor que o restante para exemplificar o que afirmo.
As suas histórias são reveladas a um anti-herói, carteiro que acha um envelope esquecido contendo um diário.
O diário pertence a uma dessas irmãs que o escreve no escuro, esfomeada e envenenada. Ainda assim ela consegue reproduzir com minúcia todas as palavras ditas pelo Jim do título muitos meses antes.
Seria de esperar que, em tais condições e com apenas alguns minutos antes que a sua carcereira volte, essa irmã resumisse os factos, confundisse detalhes, deixasse palavras pouco perceptíveis.
Pelo contrário, é um relato eloquente e aperfeiçoado de acontecimentos que uma pessoa lembraria mal mesmo num dia relaxado. Com a agravante de ser escrito num estilo que se dirige directamente a um leitor.
O artifício é tão evidente e tão despropositado que é difícil não sentir incómodo. E é mesmo impossível ceder a consciência que dele temos a partir daí.
Esse diário não termina sem um erro maior de lógica. Uma das últimas frases escritas é a reprodução da frase que esta rapariga presa dirige à irmã que está a alguns metros. Uma frase que a pretende acalmar enquanto faz saber o motivo pelo qual o diário vai ser interrompido: a carcereira aproxima-se.
Este truque é tão velho e falhado que a ironia de que ele merece ser alvo pode ser encontrada na cena sobre o Castelo de Arrrggghhh no filme Monty Python and the Holy Grail.
Essa irmã presa na mesma sala daquela que escreveu o primeiro diário também escreveu o seu, mostrando quão grande é a sorte de haver cadernos e lápis suficientes para todas.
O diário desta segunda irmã acabou molhado, mas felizmente só as primeiras páginas se tornaram ilegíveis. Aquelas que repetiam informação do primeiro diário, claro está. E apenas essas!
Mesmo querendo aceitar que a repetição de informação pode ser um aborrecimento para o leitor, não conseguiria ultrapassar o facto de as duas irmãs escreverem exactamente da mesma forma. Não me referido apenas a escreverem como se estivessem envolvidas numa interlocução, mas também ao facto de não haver um único traço distinto entre as "vozes" de ambas. Apenas se dá o caso de uma escrever sobre a fase da história em que ainda havia ingenuidade e amor e outra sobre a fase em que a raiva era dominante.
Falta ainda uma terceira irmã, que estava presa noutra zona da casa, mas que também encontrou papel e lápis para escrever um diário.
Esse diário já não temos direito a ler. O livro termina com o surgimento físico desse diário e com ele deixa um vazio.
Um vazio no espaço de uma das personagens - que até viveu o momento mais tenebroso da história; que até sobreviveu - que deveria ter algo a contar.
Um vazio na satisfação do leitor que esperaria, pelo menos, que as três irmãs tivessem o mesmo valor para o desenvolvimento da história e não fossem apenas um desdobramento para que não houvesse uma única mulher a suportar todos os acontecimentos.
Tudo isto levou a que a leitura se assemelhasse a um olhar constante para as costuras desfeitas de uma história.
Um livro feito de algumas boas microestruturas ligadas por uma conveniência macroestrutural facilista e pouco ponderada.
Tendo, ainda para mais, descoberto que o autor conseguiu que Howard Chaykin (um autor de banda desenhada que aprecio) lhe desenhasse esta magnífica tradução das últimas palavras do livro, sinto-me ainda mais defraudado por esta história - e pela capa, já agora.



Darling Jim (Christian Mørk)
Editorial Presença
1ª edição - Outubro de 2011
318 páginas

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Instantes de progressão

Uma abordagem a Israel Sketchbook poderá parecer estranho no seio deste blogue, masnão deixa de ser um caso em que uma narrativa se constrói.
A sequência imagética esparsa e pessoal ganha sentido por via das palavras do autor que ajudam a entrar nos interstícios que levam o autor do ponto de vista para um desenho ao seguinte ou que nos elucidam do papel que cada local ou pessoa representado teve na viagem.
Mas há também - talvez mais correcto fosse dizer sobretudo- uma narrativa num sentido mais global e numa interpretação mais lata do que é o domínio ficcional.
O livro parece um percurso longo através das várias zonas visitadas por Ricardo Cabral, sentido pessoalmente por ele através do desenho.
Só que o próprio autor explica que, apesar de o livro parecer uno, trata-se de um trabalho de três viagens distintas que ele terá trabalhado numa linha contínua.
Tanto quanto sabemos Ricardo Cabral terá agrupado, não só, locais visitados em viagens diferentes mas desenhos do mesmo local feitos em momentos distantes entre si. Isso é, possivelmente, sinal de um autor.
Encontrada a sua coerência interna, o seu trabalho faseado não se torna num compósito, torna-se numa obra.
Os traços de autor que se encontram passam, primeiro que tudo, pela importância que o próprio desenho tem por contraste com um livro similar feito a partir de fotografias.
A mistura de visões assombrosas dos montes da Galileia com detalhes tão corriqueiros como a mesa do pequeno-almoço tomado em Safed ou a garrafa de cerveja que comprou mostram que a transmissão da experiência está a um nível de interesse muito pessoal - como era intenção - que não resiste também ao próprio desafio que desenhar exerce sobre o autor.
Essa mistura entre o extraordinário e o banal não imita, no entanto, o tipo de registo de viagem que qualquer pessoa faz por estes dias com uma máquina digital, registando insistentemente todos os momentos sem filtro lógico ou de gosto. Há um fio condutor que nos permite vaguear como o próprio autor e que evita o cansaço de uma recolha sistemática apenas dos locais mais belos. Há uma vivência quase comunal da experiência do acto privado desta viagem.
Apesar disto, a verdade é que o método de trabalho de Ricardo Cabral combina o desenho com a fotografia, usando ele estas últimas para pintar os desenhos que executou. Esse elemento de apoio é essencial, ainda que nao precisemos de o conhecer para fazer comparações.
As cores que de lá retira dão um realismo às imagens que tornam o ambiente mais compreensível mas que não apagam a verdadeira pessoalidade do autor e do seu desenho feito de linhas nem sempre perfeitas ou de uma perspectiva ligeiramente enviesada.
Desenho através do qual ele volta a tornar-se criador - e não copista - da realidade em redor, acrescentando elementos essenciais do espaço em volta mesmo se não visíveis no ponto onde está (ver, em específico as páginas 124-125) ou reproduzindo num único desenho três momentos distintos do movimento de uma única rapariga que ali brinca.
Pelo desenho Ricardo Cabral reinventa tempo e espaço como o quis ver e não como o viu, de facto.


O penúltimo desenho de Israel Sketchbook é um indicativo do que viria depois em NewBorn - 10 Dias no Kosovo.
O autor tornou-se menos preocupado em ser um completista do desenho e da cor para se preocupar mais com a representação do movimento da própria vida.
Como nesse penúltimo desenho em que as muitas representações das pessoas que circulam se vão sobrepondo à representação do cenário, aqui o próprio acto de desenhar torna-se essencial na página.
Mais do que isso, o movimento que se sente vem do próprio acto de desenhar estar patente na representação da experiência da viagem.
Os traços deixados a lápis em torno dos elementos pintados dão conta de qual o verdadeiro foco de atenção do desenhador e de qual o espaço que só é essencial para que o desenho não fique a pender no vazio.
Há mesmo um desenho (páginas 48-49) em que estamos perante a representação das páginas de um caderno em que a mão do autor vai traçando esboços das pessoas que passam.
Aí se concretiza uma espécie de visão metalinguística do desenho sobre a sua execução.
Mais adiante (páginas 116-117), quatro desenhos do mesmo local vão gradualmente enchendo-se de cor a partir de um único ponto.
Percebe-se mais fortemente como a execução do desenho reforça a visão (ou eventualmente o imaginário, não podemos ter a certeza) de autor. Esse crescendo de cor transmite as emoções que Ricardo Cabral projectou para a sua observação.
Como ele viu é inteligível na página de forma cada vez mais precisa numa forma de expressão que supera o que foi meramente visto para reentrar no campo da recriação.
Neste livro há mais sequências de quatro painéis em que o ponto de vista é sempre o mesmo mas as pessoas mudam. Talvez nenhuma seja tão intensa quanto a acima referida, mas todas dão a noção clara de passagem do tempo.
Esse é outro elemento importante para o entendimento do que se passa até à existência final de um desenho na página.
Um desenho demora tempo mas nem todos os elementos são imutáveis. Daí que o desenhador não se satisfaça com uma única captação do que viu.
Essa ideia está patente desde o início de Israel Sketchbook na forma como a coloração vem devolver o instantâneo ao que não o é. A fotografia que serve de apoio e, no final, dá cor a cada desenho acaba por ser um dos momentos que ocorrem enquanto o desenhador leva o seu tempo a traçar a realidade.
A fotografia estacou o movimento que o desenho consegue reproduzir. O instante ajuda a complementar a mobilidade da vida.
Esta ideia concretiza-se na forma como Ricardo Cabral termina os seus desenhos dentro de automóveis usando para o mundo exterior a própria fotografia que tirou. No movimento do carro os elementos que permanecem são evidentes (e evidenciados pelo desenho) mas os muitos elemento que mudam acabam por ser resumidos no acaso de uma placa de auto-estrada que nada diz do que veio antes ou depois.
Como no sentido inverso, aqueles que são provavelmente os melhores desenhos deste conjunto, nascem a partir de fotografias porque o desenho era impossível naquele momento. Aí a imagem é muito mais demorada e detalhada, mas é a cor que os afasta do fotorrealismo, sublinhando que o desenho não pretende apenas imitar ou substituir a fotografia.
Mas é ao ver-se o desenho deixado totalmente por pintar (páginas 28-29) que se vê a aglutinação de tudo que ficou escrito acima (mesmo na ausência de cor).
Um homem em três posições/momentos distintos dentro do mesmo desenho permanece por colorir porque o objecto do desenho interferiu com este e não se terá permitido ser fotogrado para que, através desse único instante, servisse a captação do tempo que ele próprio já influenciara.
O movimento torna-se desenho e torna-se mutação do desenho.


Depois das sequências de panéis de NewBorn - 10 Dias no Kosovo tornava-se evidente que a própria ideia da narração banda desenhística já nascia nos desenhos de Ricardo Cabral.
Pontas Soltas é essa evidência na reunião de várias das suas histórias, embora o tema escolhido como ligação entre todas, Cidades, não seja o mais acertado. Eu sugeriria Instantes, algo que poderia mesmo ser o tema de ligação destes três livros.
Lágrimas de Elefante é a história mais interessante como estruturação narrativa em banda desenhada, superando a mera leitura do quotidiano, inserindo elementos que acabam por fazer as vinhetas ultrapassar o único ponto de vista possível.
Como esta, The Lisbon Studio é maravilhosa de inventividade, aproximando-se do Fantástico para falar da imaginação que transforma um espaço quando o trabalho nele executado é o de criação artística.
Mas são as restantes histórias que mais se relacionam com os dois sketchbooks que vieram antes, recuperando os elementos que fui descrevendo.
Da Cidade... usa os elementos de texto para demonstrar que a vida de um local é um acto contínuo sempre ligado que o desenho - ou a sucessão de desenhos - consegue captar melhor na sua morfose do que uma fotografia alguma vez conseguirá.
5 Jours (nas suas duas partes desenhas com um intervalo pelo meio) utiliza narrativamente os traços por colorir, a visão do próprio papel em que o desenho está prestes a nascer ou o uso de fotografia como cenário de fundo para fixar a vertigem incapturável pelo desenho. Os elementos essenciais que se foram destacando, sobretudo, no trabalho sobre o Kosovo. O processo de desenho entra mesmo no tema da banda desenhada, com uma voz balonada pertencente ao criado invisível a descrever as características envolvidas no desenho que estamos a ver ao mesmo tempo.
No entanto, é em Barcelona-Kosovo-Barcelona que Ricardo Cabral deixa os elementos mais importantes para perspectivarmos o progresso no seu trabalho futuro.
Ao reproduzir os sacos de pano e o papel de mesa em que fez alguns dos desenhos da história, Ricardo Cabral faz notar que tanto o meio como o material serão tão importantes para a expressão do desenho como as formas do seus traços, as cores aplicadas mais tarde ou o ponto de vista escolhido.
Não se trata somente de dar conta da textura do trabalho mas também da realidade em que o desenho interfere - e molda - porque este não se restringe ao papel cuidado nos blocos do autor.
O desenho de Ricardo Cabral espraia-se para fora da página como na própria vida do autor que ele nos vai mostrando trabalhada a nosso prazer.


Israel Sketchbook (Ricardo Cabral)
Edições Asa
1ª edição - Outubro de 2009
214 páginas


NewBorn - 10 Dias no Kosovo (Ricardo Cabral)
Edições Asa
1ª edição - Outubro de 2010
144 páginas


Pontas Soltas (Ricardo Cabral)
Editorial Presença
1ª edição - Outubro de 2011
92 páginas